A Psicodinâmica da atividade de Liderança

Psicologia Pastoral

Pe. José Carlos dos Santos

Introdução

 

Um tema particularmente complexo para se considerar é a liderança. Voltando ao passado, na idade média os líderes e as autoridades em geral gozavam de particular respeito e deferência no contexto da estrutura social, nos mais diversos níveis. Quanto ao iluminismo, movimento sociocultural que marcou profundamente a cultura ocidental, uma de suas bandeiras era a exaltação do indivíduo e a destituição das autoridades. Na atualidade, assistimos a um tipo de cultura em que a individualidade goza de primado quase absoluto, e todos aqueles que são investidos de cargos de liderança enfrentam situações diversas de desafio e confronto.

Quanto à definição[1], por liderança podemos entender “o papel diferenciado, dentro de um grupo, caracterizado por um certo tipo de influência no sentido de dirigir, controlar e modificar o comportamento do grupo, na medida em que possui a capacidade de combinar com as características e expectativas do próprio grupo”. O autor desta definição, Pe. Luigi Rulla, esclarece que esta é uma definição funcional de liderança, que em si mesma se refere ao poder e ao papel de legitimidade do líder, e às diferentes formas e níveis de influência que exercerá sobre o indivíduo ou grupo.

Em sua reflexão, Pe. Rulla situa a liderança no horizonte da caridade cristã. A atividade do líder, objetivando mudanças não somente no comportamento, é entendida especificamente nesta ótica. Pe. Rulla deseja apresentar elementos que possibilitem visualizar e compreender os processos psicodinâmicos subjacentes a este tipo específico de liderança. Para este objetivo, apropria-se de conceitos utilizados para análise da liderança em outros contextos e ambientes, o que em nada desmerece a sua reflexão.

 

A Psicodinâmica da liderança

Para analisar a psicodinâmica da liderança, cabe a seguinte pergunta: quais são os métodos, técnicas ou habilidades de que o líder pode se valer para exercer influência sobre os indivíduos ou grupos, objetivando provocar mudanças, que poderão estar orientadas à alteração do comportamento, opiniões, objetivos, necessidades ou valores das pessoas? Para responder a esta pergunta são utilizados conceitos desenvolvidos por John French e Bertram Raven, no artigo The Basis of Social Power.

Os autores falam inicialmente do Poder[2]Remunerativo.[3] Este tipo de poder ou liderança tem como principal característica a oferta de recompensa ou remuneração para se adequar à proposta do líder. A eficácia deste poder aumenta proporcionalmente à percepção do tipo de poder que o líder é capaz de mediar. Em outras palavras, quanto maior for a capacidade de remuneração da parte do líder, maior será a aceitação de sua liderança.

As mudanças que são induzidas pelo poder remunerativo, que inicialmente são dependentes da presença e controle do líder, com o tempo podem se tornar estáveis, já que a oferta de recompensa cria um estado de aceitação para com o líder. O poder remunerativo, contudo, tem muitos limites, e se restringe ao que pode ser objeto do alcance de recompensas. As tentativas de exercer o poder remunerativo fora do âmbito da influência remunerativa do líder tende à diminuição de sua força de influência. Exemplos: oferecer recompensa para o exercício de ato impossível de ser realizado; para atividades que o liderado não admite realizar em troca de remuneração; e nas situações em que o liderado entenda que sejam pequenas as possibilidades de ser recompensado, reduzindo a credibilidade em futuras promessas.

Outro tipo de poder é o coercitivo [4], que se caracteriza pela expectativa de ser punido pelo líder se falhar em se conformar à sua vontade. A força deste poder, de modo semelhante ao anterior, depende da força da ameaça de punição, da objetiva probabilidade de ser punido caso não haja em conformidade com o líder. Por exemplo, enquanto a oferta de prêmio por aumento de produção em uma fábrica pode servir como base para o poder remunerativo, a retirada de benefícios se caracteriza como poder coercitivo. Também esta técnica de liderança cria dependência da observação por parte do líder.

Algumas vezes, a distinção entre poder remunerativo e coercitivo não é clara[5], mas se torna importante porque as duas técnicas têm dinâmicas que são diferentes. Enquanto o poder remunerativo pode eventualmente resultar em sistema independente, os efeitos do poder coercitivo continuarão a ser dependentes de observação e controle. Ainda, o poder remunerativo tende a aumentar a atração para com o líder, enquanto o poder coercitivo diminui tal atração. Neste último caso, a ameaça de punição criará uma força no sentido do abandono da área de alcance do líder.

Outro tipo de poder é o de legitimidade[6]. É definido como o poder em que se tem a percepção de que o líder tem o direito de influenciar, com a consequente obrigação de se submeter a tal influência. Para este tipo de liderança, portanto, é imprescindível que as pessoas envolvidas cultivem determinados tipos de valores. Na prática, tal poder se faz presente não somente diante daquelas pessoas que se constituem em autoridades legítimas, mas mesmo simplesmente quando alguém empenha sua palavra em ajudar outra, e valoriza a palavra empenhada a ponto de não romper o compromisso estabelecido.

As bases para a constituição do poder de legitimidade podem ser múltiplas[7]. Uma delas são os valores culturais, como na situação em que a pessoa X tem características que, em determinada cultura, a constituem autoridade sobre outra pessoa. Algumas destas características são a idade, a inteligência, a classe social, características físicas, o sexo, etc.

Outra base para o poder de legitimidade é a aceitação da estrutura social. Se a pessoa aceita a estrutura do seu grupo, comunidade, organização ou sociedade, ele aceitará a legitimidade do poder de quem ocupa um cargo superior na hierarquia. Pode ainda basear-se na designação por parte de um agente “legitimador”, como quando se aceita a autoridade do vice-presidente de uma empresa porque foi delegado pelo presidente para resolver determinada situação.

Há o poder de referência[8], que se caracteriza pelo processo de identificação com o líder. Por identificação, neste contexto, se designa o sentimento ou desejo de unidade com o líder. Assim, se X é a pessoa por quem Y está altamente atraído, Y sentirá forte desejo de se tornar associado e semelhante a ele. A identificação é estabelecida quando a pessoa se comporta, acredita, e procura perceber a realidade como aquela com a qual se identifica.

Um aspecto específico do poder de referência é que uma pessoa pode ter a habilidade para influenciar outra, mesmo sem ter consciência de estar exercendo esta influência[9] ou liderança. A força deste tipo de liderança é proporcional à força do sentimento de atração, de modo que quanto maior a atração, maior a identificação, e consequentemente maior será o poder do líder.

O novo estado do sistema produzido pelo poder de referência pode ser dependente ou independente, mas o nível de identificação não é afetado pela maior ou menor observação. De fato, como dissemos anteriormente, frequentemente não se tem consciência do poder de referência que se exerce sobre uma pessoa.

Por fim, há o poder de competência[10]. O líder é percebido como dotado de especiais conhecimentos em determinada área. Provavelmente, a competência é avaliada em relação ao próprio conhecimento, ou em relação a um padrão absoluto. A influência exercida é primariamente na estrutura cognitiva, e a mudança do comportamento, que pode acontecer, é secundária.

A abrangência do poder de competência é mais limitada que aquela do poder de referência[11]. Não somente se restringe ao âmbito cognitivo, mas o expert é visto como tendo um conhecimento ou habilidade superior em uma área específica, e o seu poder pode estar limitado a esta área.

Há ainda o poder de informação[12], apresentado por Pe. Rulla como distinto do poder de competência. As mudanças operadas sobre os indivíduos se devem, neste caso, ao conteúdo da comunicação, e não à fonte ou pessoa da qual a informação se origina.

No final do artigo, French e Raven apresentam um sumário de considerações, cujos itens principais são os seguintes[13]:

1 – Para cada tipo de poder, o número de pessoas que se pode atingir varia em razão de diferentes fatores, mas em geral o poder de referência tem uma abrangência maior.

2 – Cada tentativa de utilizar o poder fora de sua área específica tenderá a reduzir a sua força.

3 – A liderança construída a partir das técnicas remunerativas e coercitivas será altamente dependente da observação e controle de quem a exerce.

4 – Coerção resulta em diminuição da atração para com o líder, e aumento da resistência, enquanto a oferta de recompensa resulta em aumento da atração e baixa resistência.

5 – Quanto mais legítima a coerção, menor resistência e retração irá produzir.

De modo muito pertinente, Rulla[14] observa que embora seja necessário considerar cada uma das forças estruturais da liderança separadamente, é raro que somente uma fonte de influência seja operativa em um dado momento. Normalmente várias combinações de força estarão envolvidas.

As características da cultura atual tornam a atividade de liderança um real desafio. Rulla cita o Concílio Vaticano II[15]e acentua a atual consciência da dignidade pessoal, ao lado de uma crescente consciência de comunidade, afirmando que “as pessoas aumentaram o sentimento de responsabilidade diante de uma participação ativa na comunidade e do dever de contribuir para o seu bem-estar[16]. Esta demanda pela dignidade pessoal e o senso de responsabilidade pela participação na comunidade podem tornar-se um desafio para a autoridade.

Como dissemos em tópico anterior, a liderança construída a partir do poder de legitimidade atualmente sofreu significativa diminuição, enquanto o poder de referência ocupa lugar de primazia. Ainda, a considerada consciência da dignidade pessoal tende a levar a pessoa a governar a própria vida a partir de princípios subjetivos. Contudo, a fragilidade no nível de consistência (ou maturidade) pessoal pode torná-la uma pessoa pseudoautônoma, no sentido de tornar-se lei para si mesma.

Quanto aos estilos de liderança, podemos considerar a seguinte polaridade[17]:

a) Estilo autoritário de liderança: quando o líder determina todas as decisões, até em seus menores detalhes;

b) Estilo permissivo de liderança: quando as decisões são tomadas pelos indivíduos ou pelos grupos, sem a participação do líder, ou com um mínimo de participação;

Dentro do contínuo compreendido entre esta polaridade, o desejável é procurar o estilo de liderança que saiba promover a participação do grupo nas decisões, sem abdicar do seu papel de guia e de auxílio a ser oferecido aos membros para a realização dos objetivos propostos. Sendo afirmada a necessidade de o líder promover a participação dos membros, Rulla afirma que “não há dúvida de que o objetivo de promover a participação é um dos mais desafiantes para o líder enquanto autoridade[18].

 

Considerações conclusivas

Sobre a eficácia das decisões tomadas de modo participativo, Rulla conclui que não há consistente evidência de que a qualidade das decisões dependa da quantidade de participantes[19]. Deve-se considerar não somente a quantidade de pessoas mas, sobretudo, a maior ou menor informação e competência (expertise) do líder e dos membros. Influi ainda a motivação, consciente ou inconsciente, das pessoas envolvidas. Quando há inconsistências (imaturidades) centrais, os resultados poderão ser negativos, e os melhores resultados serão obtidos quando houver unidade diante dos valores e pluralismo nas atitudes. É importante ainda a habilidade do líder para guiar a participação do grupo, devendo os líderes serem conhecedores de modelos democráticos de direção. O grupo deverá ser levado a[20]:

a) Identificar a natureza do problema;

b) Manter a discussão orientada para o objetivo e não assumir conotação pessoal;

c) Considerar todas as sugestões;

d) Estimular o grupo a analisar e avaliar todas as possíveis soluções;

A participação do grupo é de grande utilidade como meio para favorecer a efetiva execução das decisões[21]. Há pesquisas que demonstram que envolver o grupo na função de resolução dos problemas e na tomada de decisões produz maior aceitação das decisões, e maior probabilidade de que cada membro executará as decisões tomadas. Como afirma Rulla, “em igualdade de condições, uma pessoa tem maior probabilidade de executar decisões que ajudou a formular, que decisões para as quais não contribuiu e que foram tomadas por outras pessoas[22].

Uma liderança orientada no sentido participativo deverá caracterizar-se por um tipo de poder ou influência que envolva competência, informação e referência. Estas afirmações nos levam a concluir que o líder deve estar atento ao fato de que no atual período histórico, a força da liderança ou autoridade que se baseia no que é meramente normativo tende a diminuir; por outro lado, há um crescente aumento do poder de informação, referência e competência. A utilização destes dados será de significativa utilidade para o bom êxito da difícil e necessária atividade de liderança.

Notas:

[1] L. Rulla, “Psicologia del Profondo e Vocazione – Le Istituzioni”,209. Literalmente, temos: “il ruolo diferenziato all’interno di un gruppo connotato da un certo tipo di influenza nel senso di direzione, controllo e mutamento del comportamento del gruppo in quanto possiede capacità di combinarsi con le caratteristiche e le attese del gruppo stesso”.

[2] Por poder, neste contexto, entendam-se os métodos, técnicas ou recursos utilizados pelo líder, objetivando exercer influência sobre os liderados, conforme explicitado no texto.

[3] French and Raven, “Studies in Social Power“, 156.

[4] French and Raven, “Studies in Social Power“, 157.

[5] French and Raven, “Studies in Social Power“, 158.

[6] French and Raven, “Studies in Social Power“, 158.

[7] French and Raven, “Studies in Social Power“, 160.

[8] French and Raven, “Studies in Social Power“, 161.

[9] French and Raven, “Studies in Social Power“, 162.

[10] French and Raven, “Studies in Social Power“, 163.

[11] French and Raven, “Studies in Social Power“, 164.

[12] L.Rulla, “Depth Psychology and Vocation“, 285.

[13] French and Raven, “Studies in Social Power“, 165.

[14] L.Rulla, “Depth Psychology and Vocation“, 292.

[15]L.Rulla, “Depth Psychology and Vocation“, 294. Literalmente: “…man increasingly feels the responsability to participate actively  in community and to contribute fully to its welfare”.

[16] L.Rulla, “Depth Psychology and Vocation“, 294.

[17] L.Rulla, “Psicologia del Profondo e Vocazione – Le Istituzioni“, 209.

[18] L.Rulla, “Depth Psychology and Vocation“, 297. Literalmente: “there is little doubt that the issue of participation is one of the most challenging to leadership as authority”.

[19] L.Rulla, “Depth Psychology and Vocation“, 299.

[20] L.Rulla, “Depth Psychology and Vocation“, 299.

[21] L.Rulla, “Psicologia del Profondo e Vocazione – Le Istituzioni“, 87.

[22] L.Rulla, “Psicologia del Profondo e Vocazione – Le Istituzioni“, 87. Literalmente: “a parità di condizioni, una persona ha una più alta probabilità di eseguire decisioni alla cui formulazioni ha contribuito che non decisioni fatte per lui da altrui”.

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