Pe. José Carlos dos Santos
Poucos temas são tão relevantes quanto aqueles ligados à afetividade. A necessidade de afeto, de recebê-lo e de expressá-lo, é não somente uma entre outras de igual relevância. É a necessidade humana por excelência. Creio que esta seja uma afirmação em que haja consenso entre nomes importantes da psicologia e da teologia cristã. Um princípio que fundamenta a antropologia bíblica diz respeito à vida afetiva: “não é bom que o homem esteja só” (Gn 2, 18). A narrativa bíblica do Éden, do paraíso, é icônica quanto à natureza humana. Embora vivendo no paraíso, numa condição de harmonia plena com a natureza e com o criador, faltava algo que diz respeito à essência do humano, a relação com alguém que lhe seja semelhante, a intersubjetividade. É no encontro, na relação entre iguais, que a experiência afetiva, indispensável à nossa construção como pessoa, acontece. No novo testamento Jesus reafirma a importância da relação afetiva, colocando o amor como o ápice da vida espiritual: “Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros” (Jo 13, 34).
Esta realidade complexa que a palavra afeto compreende foi objeto de estudo e investigação, sob diferentes aspectos, ao longo da história da psicologia. A antropologia freudiana tem a libido como o conceito principal. A mente humana funciona, segundo Freud, a partir do princípio do prazer, de modo que “evitar a dor e obter prazer” (HALL-LINDZEY, 1986, p. 53) seria o denominador comum a todas as ações humanas.
Neste texto, contudo, optarei por seguir a reflexão de Karen Horney, psicanalista pós-freudiana, nascida na Alemanha em 1885. Em um livro publicado em 1937, denominado “A personalidade neurótica do nosso tempo”, Karen dedica alguns capítulos à necessidade neurótica de afeto. Embora seja uma obra escrita há décadas, a conclusão é que a condição humana continua essencialmente a mesma.
O conceito fundamental da obra de Horney é a ansiedade básica, da qual deriva a necessidade de afeto, que pode tornar-se neurótica. A autora define a ansiedade básica “como a sensação de ser pequeno, insignificante, indefeso, abandonado, ameaçado num mundo disposto a abusar, ludibriar, atacar, humilhar, atraiçoar, invejar” (HORNEY, 1937, p. 68-69). Sendo essa uma experiência comum a todas as crianças, não é difícil deduzir que, durante a fase inicial da vida, “o mal fundamental é sempre a falta de um autêntico calor humano e afeição” (HORNEY, 1937, p. 60). A autora afirma que “uma criança pode aguentar um bocado do que é geralmente considerado traumático” (HORNEY, 1937, p. 60), incluindo surras, desde que a criança tenha experimentado suficiente carinho e afeição. A frustração desta necessidade “lança as sementes de futuros sentimentos de imensa insegurança”, que é o componente básico da personalidade neurótica.
Segundo a autora, a ansiedade pode se tornar intolerável, provocando intensos e constantes sofrimentos e instabilidade emocional. Pode haver o que Karen classifica como “um abalo nas bases da confiança própria” (HORNEY, 1937, p. 71). E quanto mais intolerável a dor causada pela ansiedade, maior urgência sentirá a psique de erigir medidas de proteção, objetivando reduzir o sofrimento e estabelecer uma condição interna ao menos tolerável. Há diferentes medidas pelas quais se procura buscar proteção contra a ansiedade, sendo a conquista de afeição a primeira delas. Neste caso, é como se a mente neurótica passasse a obedecer ao seguinte lema: “se você me ama, não me magoará” (HORNEY, 1937, p. 71).
Uma pergunta elucidativa seria a seguinte: qual a diferença entre necessidade normal e necessidade neurótica de afeto? Karen responde a esta pergunta fazendo uso de uma analogia:
Podemos subir numa árvore porque queremos verificar nosso vigor e habilidade e ver o panorama lá de cima, ou podemos fazê-lo porque estamos sendo acossados por um animal feroz. Em ambos os casos, subimos na árvore; os motivos, porém, serão diferentes. No primeiro, fazemo-lo por prazer, ao passo que no outro somos levados pelo medo e temos que fazê-lo devido a uma necessidade de segurança. No primeiro caso, somos livres para subir ou não; no segundo, somos impelidos por uma necessidade premente. No primeiro caso podemos escolher a árvore mais apropriada ao nosso objetivo; no outro, não temos outro recurso senão utilizar a primeira árvore ao nosso alcance, e nem mesmo terá de ser forçosamente uma árvore: pode ser um mastro ou uma casa, desde que atenda a finalidade de proteção. (HORNEY, 1937, p. 76).
A analogia usada por Karen mostra claramente a motivação subjacente à necessidade neurótica de afeto. A pessoa neurótica, insegura e ansiosa, se serve da busca de afeto como uma tática para lutar contra os seus sentimentos de isolamento e impotência. Nesses termos, amor e afeição neurótica são diferentes tanto na psicodinâmica quanto na motivação. No amor, segundo Karen, há um sentimento de afeição que se deseja compartilhar, e isso é o que move as pessoas a se relacionarem. Na afeição neurótica, diferentemente, “o sentimento primário é a necessidade de alcançar confiança em si mesmo, sendo meramente secundário o pseudo-amor” (HORNEY, 1937, p. 80). E não tenhamos dúvida de que esta diferença, que apenas parece sutil, irá estabelecer uma diferença profunda entre as duas realidades. Amor adulto e maduro e afeição neurótica, absolutamente, não são a mesma coisa. A analogia acima permite distinguir as duas realidades.
Uma característica que é claramente identificável na necessidade neurótica de afeição é sua natureza compulsiva (HORNEY, 1937, p. 86). Receber afeto, nesse caso, é de natureza vital. Há não somente o gosto de dar e receber afeto, que se vive na liberdade e na gratuidade, mas há a necessidade de ser estimado a qualquer custo. A existência, felicidade e segurança dependem disso. Por conseguinte, há a incapacidade de ficar sozinho, sendo a solidão o mal maior a ser evitado. Segundo Karen, a solidão provoca desde uma simples inquietação e desassossego até definidos sentimentos de terror. O estado de dependência pode estar vinculado a uma pessoa, que pode ser a mãe, o marido, algum amigo. Não faz diferença o sexo, podendo ser uma pessoa do mesmo sexo ou do sexo oposto. A busca de afeto, ainda, pode se focalizar em certos tipos de grupos, como os grupos políticos ou religiosos.
Um componente pouco compreendido pelo observador externo é o seguinte: “Já que obter afeto é de importância vital, o neurótico pagará qualquer preço para obtê-lo, na maior parte dos casos, sem perceber o que está fazendo” (HORNEY, 1937, p. 88). E essa afirmação deve ser entendida literalmente. Recordo um caso em que uma jovem, envolvida no relacionamento com uma pessoa inescrupulosa, se sujeitava à agressão física, ao abuso sexual, e à exploração financeira. A frase repetida pelo abusador era que ela devia satisfazer tais exigências porque não conseguia viver sem ele. E o que ela experimentava era exatamente isso. Sentia o mundo prestes a cair em pedaços, caso não recebesse uma palavra carinhosa, um sorriso, um gesto de atenção.
Juntamente com a compulsividade, a necessidade neurótica de afeição é também insaciável. Há uma avidez, que é fomentada pela ansiedade. Como a sensação de isolamento, pequenez e insegurança são inconscientes, receber afeto, por mais intenso e genuíno que seja, não irá atingir o cerne do conflito intrapsíquico. Ao receber afeto, a pessoa se sentirá tranquila, mas apenas momentaneamente. Haverá renovadas e repetidas demandas de atenção de tal grandeza que a satisfação se torna impossível. Quanto mais atenção se oferece, maior quantidade de atenção será exigida. E neste contexto surge o ciúme neurótico, “ditado por um medo constante de perder a posse da pessoa; consequentemente, qualquer outro interesse que a pessoa tenha, aparece para o neurótico como um perigo em potencial” (HORNEY, 1937, p. 95). Segundo Karen, a pessoa neurótica, via de regra, nem de longe percebe a dimensão de sua exigência de afeto.
Semelhante dinâmica afetiva assume, muitas vezes, a forma de paixão ou desejo sexual (HORNEY, 1937, p. 109). Karen afirma que
Se uma pessoa convenceu-se de que é praticamente inconcebível para ela conseguir afeição, então o contato físico pode servir como um sucedâneo para as relações emocionais. Nesse caso, a sexualidade é a principal, senão a única via de acesso a outras pessoas e, por isso, assume uma importância desmedida (HORNEY, 1937, p. 114).
Na situação anteriormente descrita, a pessoa neurótica tenderá a erotizar ou sexualizar as relações interpessoais, vendo nesse tipo de relação a forma primordial de receber afeição. Via de regra, serão homens e mulheres que passarão rapidamente de uma relação sexual a outra. As relações terão natureza compulsiva (HORNEY, 1937, p. 113), além de a escolha dos parceiros ser caracterizada por uma “absoluta falta de critério” (HORNEY, 1937, p. 113). O mal a ser evitado é a solidão. E esta falta de critério, em alguns casos, “evidencia-se em relação ao sexo do possível parceiro” (HORNEY, 1937, p. 114). Desde que se receba afeto, em certos casos, não fará diferença se esse afeto provém de relações com ambos os sexos, de uma pessoa do mesmo sexo ou do sexo oposto.
Do mesmo modo que a necessidade neurótica de afeto interfere na vivência da sexualidade, irá interferir também na capacidade de tolerância da abstinência sexual. Segundo a autora, o “quanto de abstinência sexual pode ser bem tolerado, varia com a cultura e com o indivíduo” (HORNEY, 1937, p. 117). As pessoas são diferentes também quanto à intensidade da necessidade de relação sexual, que depende de diversos fatores físicos e psíquicos. Contudo, nos casos em que a sexualidade tenha se tornado “válvula de escape para mitigar sua ansiedade”, a pessoa será particularmente incapaz de suportar a abstinência, ainda que apenas temporariamente (HORNEY, 1937, p. 117).
Como se percebe, a busca pela maturidade e pelo bem-estar psíquico nos convida à autoanálise, especialmente orientada para a natureza e para a intensidade da necessidade de afeto que se experimenta. Enquanto o amor realiza, eleva, enche a vida de sentido e beleza, a necessidade neurótica de afeto provoca frustração, fragiliza, e aprisiona num círculo vicioso formado por diversos tipos de dor e sofrimento, não só para a pessoa neurótica. É necessário coragem para romper com essa dinâmica neurótica, o que na maioria das vezes irá implicar na busca de ajuda profissional. O ponto de partida será acreditar que a vida tem mais a oferecer e estar disposto a percorrer o longo e árduo caminho para se chegar até lá.
HORNEY, Karen. A personalidade neurótica do nosso tempo. Tradução Octávio Alves Filho. 11 ed. Bertrand Brasil.