Padre José Carlos dos Santos
Há algum tempo os funcionários da paróquia vêm percebendo que o Pe. Y está diferente. Normalmente alegre e convivente, seu humor ultimamente não é o mesmo. O semblante sempre tristonho, já pela manhã se percebem claramente sinais de cansaço. Parece não descansar durante a noite. Em muitos momentos se mostra agitado e inquieto. Não consegue ficar no mesmo lugar por muito tempo, e lhe falta paciência para reuniões, conversas um pouco mais prolongadas e para os atendimentos rotineiros do funcionamento paroquial. Este estado se mantém há alguns meses. Aconselhado por colegas próximos, foi ao médico, e sendo encaminhado ao psiquiatra, recebeu um duplo diagnóstico para transtorno depressivo e transtorno de ansiedade generalizada, para os quais está fazendo uso de medicamentos e acompanhamento psicológico, com sessões duas vezes por semana. O Pe. Y está próximo de completar 30 anos de sacerdócio, e é a primeira vez que enfrenta semelhantes dificuldades.
Ansiedade – É um sinal de alerta; indica um perigo iminente e capacita a pessoa a tomar medidas para lidar com a ameaça. Quando se torna generalizada, configura-se um quadro de ansiedade e preocupação excessivas sobre vários acontecimentos ou atividades, na maior parte dos dias, durante um período mínimo de seis meses. (Kaplan & Sadock, p. 630)
Depressão – Caracteriza-se pela presença de humor triste, vazio ou irritável, acompanhado de alterações somáticas e cognitivas que afetam significativamente a capacidade de funcionamento do indivíduo. (DSM 5, p. 155) |
Introdução
Ansiedade e depressão estão entre os dois maiores males do mundo atual, no que se refere à saúde psíquica. São os transtornos mentais mais comuns, afligindo milhares de pessoas em todo o mundo. Não escolhem faixa etária. Pessoas de todas as idades padecem em razão dos variados sintomas das duas condições mentais, independente de serem crianças, adolescentes, jovens ou pessoas adultas. Também não há distinção quanto à classe social, sexo ou atividade profissional, embora haja profissões que mais facilmente predispõem a uma ou outra (ou uma e outra) condição.
Ansiedade e depressão são transtornos mentais distintos. Não há dúvida! Mas têm muito em comum, sobretudo o fato de serem sinônimo de sofrimento. As dores provocadas por ambas as condições podem ter intensidades diferentes. Há os casos em que ansiedade e depressão se tornam quadros clínicos crônicos. Creio que todos conheçamos pessoas que são identificadas por serem “ansiosas” ou por serem “deprimidas”, e que mesmo assim, à custa de grande esforço, a duras penas conseguem cumprir os compromissos e responsabilidades diários, por vezes até sem demonstrar o que se passa em seu interior. São casos em que os referidos transtornos mentais não são tão intensos ao ponto de desestruturar o funcionamento mental, mas têm energia suficiente para tirar a alegria e o colorido da vida.
Normalidade ou Patologia?
Há muitas situações, porém, em que ansiedade e depressão chegam ao nível do insuportável. Um presbítero, recentemente, durante a pandemia, entrou num quadro de sofrimento, creio que provocado simultaneamente por ansiedade e depressão. Deitava-se por volta de 21h, e acordava por volta de 2h30 todas as noites. A agitação não permitia que adormecesse novamente. Pela cabeça passava uma multiplicidade de pensamentos, sempre negativos, alguns deles chegando a ser catastróficos. Tinha assumido uma função objetivamente difícil em sua diocese, e que se tornara quase impossível de ser administrada em razão do agravamento da crise financeira de 2020. Em cada manhã se levantava exausto fisicamente, e esgotado emocionalmente. Como estava em regime de isolamento, e com atividades pastorais muito limitadas, também um quadro de tristeza havia se instaurado. Havia dias de quase completa solidão. Foi percebendo que necessitava de ajuda médica, o que o levou ao psiquiatra, e ao início de um tratamento que se prolonga até aos dias atuais.
Como se percebe, o presbítero não está imune a nenhum transtorno mental, o que compreende ansiedade e depressão. Pesquisas feitas em diferentes países e em diferentes contextos revelam que a saúde mental do presbítero não difere da saúde mental da população em geral. Embora normalmente a preparação para o ministério ordenado seja prolongada e cuidadosa, isso não significa que haja significativa mudança em nível de estrutura psíquica. As fragilidades estruturais resultantes de experiências negativas (traumas, fixações, complexos) vividas nos anos iniciais costumam manter-se resistentes, perpassando as etapas da formação inicial, e provocando diferentes níveis de debilidade diante do estresse, da pressão e da exigência que normalmente fazem parte do exercício do ministério ordenado.
Mas o que caracteriza os transtornos de ansiedade e depressão? Comparativamente, por empatia, é possível construir uma percepção do que se passa no mundo interior de quem é diagnosticado com tais condições mentais. Há a ansiedade normal, que todos experimentamos, assim como há a tristeza que diariamente nos acompanha. Para se ter uma ideia do que sejam os transtornos ligados a estas condições, basta imaginar o que seria experimentar os mesmos sentimentos numa intensidade que atinge o nível de desestruturar a organização mental, e por muito mais tempo. Aliás, quanto ao tempo, um dos maiores agravantes é a perda da esperança de que o sofrimento que se experimenta um dia irá passar.
Ansiedade e depressão nem sempre são negativas. Podem estar presentes na personalidade em intensidade suportável, exercendo função adaptativa. Uma certa quantidade de ansiedade diante de um compromisso ou de uma situação mais exigente colocará a totalidade da pessoa em estado de alerta, e não lhe permitirá relaxar enquanto não tiver adotado as medidas cabíveis, e não estiver seguro de que tudo está devidamente organizado. Uma certa dose de tristeza, de humor “deprimido” nos obriga, pela regressão, à atitude de introspecção, ao retorno ao mundo interior. É o que acontece depois das desilusões e frustrações. A regressão, muitas vezes provocada pelas dores e tristezas, pode ser fonte de sabedoria e revigoramento, indispensáveis ao incessante processo de autoconhecimento e de maturação.
Como foi dito anteriormente, ansiedade e depressão podem atingir a intensidade de configurarem transtornos mentais. Podem tornar-se agudas o suficiente para provocar delírios e alucinações. Inquietação, fadiga, irritabilidade, desesperança, humor deprimido, insônia ou hipersonia, dificuldade de se concentrar, somatizações diversas…é quase infindável o elenco de adjetivos, de males que delas são derivados. A vida não somente se torna difícil de ser vivida. Pode tornar-se indesejada, de tal maneira que o autoextermínio pode se mostrar, insidiosamente, como uma opção atrativa.
Fatores que contribuem para ansiedade e depressão no clero
Quanto ao clero, reafirma-se o princípio de que está conservada, em tudo, a humanidade dos que se ordenaram. O cultivo da espiritualidade, maturada nos longos anos de seminário, muitas vezes com o delicado e atento cuidado dos diretores espirituais, divide espaço com fragilidades psíquicas e, não raramente, com transtornos mentais. Há a ação da graça, há a internalização de valores, há o seguimento e identificação com Jesus Cristo, a quem se busca seguir e servir fielmente. Simultaneamente, há o influxo dos processos intrapsíquicos, que podem assumir o controle do funcionamento mental, orientando o ministro ordenado para comportamentos e atitudes muito distintas daquelas conscientemente desejadas.
Em razão disso, entendo que a principal origem dos referidos transtornos mentais, também para os ministros ordenados, são os próprios conflitos interiores. Há estudiosos da personalidade que entendem que a conflitividade é uma característica natural da mente humana. Fantasia e realidade, desejos e limites, prazer e dever, razão e emoção…embora não sejam inimigos naturais, muitas vezes expõem o ministro ordenado a situações delicadas, de solução nada fácil.
O Pe. Amedeo Cecini, ao discorrer sobre este assunto, apresenta a situação do sacerdote recém ordenado. Por estar na etapa da juventude, há inevitavelmente o conflito entre o desejo de servir a Deus, de entregar-se no serviço ao Reino, e os naturais apelos ligados à afetividade e à sexualidade. A juventude é a etapa da vida em que, psicologicamente, a pessoa busca a intimidade afetiva e sexual. É nesta fase do desenvolvimento psíquico que normalmente ocorre a ordenação sacerdotal, o que torna inevitável o conflito “entre desejos”, no dizer do Pe. Cencini. A capacidade de enfrentar saudavelmente este específico conflito é fundamental, por estabelecer a base para o enfrentamento dos demais conflitos, que em diferentes momentos irão se manifestar.
Os conflitos interiores, então, poderão ser fonte de ansiedade e de depressão. São as situações em que a principal origem do problema não será a paróquia, ou o colega no ministério, ou a estrutura da Igreja. Claro que o contexto pode facilitar ou fragilizar, ajudar a integrar ou a fragmentar. Uma conquista imprescindível será, nestes termos, o desenvolvimento de uma suficiente consistência psíquica e vocacional, que dará ao sacerdote a liberdade suficiente para agir em sintonia com suas escolhas e opções vocacionais. Nas situações em que prevalecerem acentuadas inconsistências, estará comprometida tanto a capacidade de decidir, quanto a de dispor de si, na direção das escolhas vocacionais que foram feitas.
O cuidado com os conflitos interiores é condição sine qua non para bem viver o ministério ordenado, com níveis normais e suportáveis de ansiedade e tristeza. Mas não é suficiente. Há variáveis que são de natureza exterior. Há estudiosos da personalidade que acentuam que o ambiente exerce diferentes tipos de pressão sobre o indivíduo, algumas delas sendo fragmentadoras. O Pe. Rulla, em seus estudos sobre a personalidade humana, afirma que o perfil do líder de uma instituição religiosa não é uma variável secundária. O estilo de liderança (e personalidade) do bispo diocesano, o modo de conduzir administrativa e pastoralmente a diocese, e sobretudo o modo de se relacionar com o presbitério poderá contribuir significativamente para o bem-estar e a comunhão do presbitério (e dos presbíteros individualmente), ou poderá ser fonte de ansiedade e de sofrimento. Em cada Igreja particular, o bispo é a autoridade. O presbítero é seu colaborador e lhe deve obediência. Há relações maduras, construtivas e estruturantes entre bispos e presbíteros, mas há também situações em que as relações são imaturas, e fonte de sofrimento. O lado mais frágil da relação – embora haja não poucas exceções – normalmente é ocupado pelo presbítero. Ocorre também que o presbitério crie para o bispo não poucas dificuldades e sofrimentos.
Ansiedade e depressão são frequentemente resultado de sobrecarga de trabalho, e da insegurança e complexidade da evangelização neste contexto de pós-modernidade. Há quem fale em pós-cristandade. É fato o quanto é belo o caminho construído pela Igreja no Brasil, ao longo dos mais de 500 anos de anúncio do evangelho. É igualmente fato que há sobrecarga de trabalho para os presbíteros, tanto nas cidades quanto nas dioceses de interior e em regiões de missão. Aliado a isso está o cansaço e sobrecarga também para as lideranças leigas, o que desafia ainda mais o presbítero em seu bem-estar espiritual e psicológico.
A literatura sobre ansiedade a associa a sentir-se ameaçado. Ansiedade é irmã gêmea do medo. Provoca ansiedade sentir-se desamparado diante de algum tipo de ameaça. Os estudos apresentam como mais expostas e frágeis as pessoas que vivem sozinhas: solteiros, separados e viúvos, pessoas que não gozam do amparo e da disponibilidade afetiva de um ambiente familiar. Aqui há muito o que refletir quanto à condição do presbítero. Há quem diga que no presbitério o presbítero constrói e encontra amparo fraterno, a experiência de amar e ser amado de que necessita, enquanto homem e enquanto cristão. Mas, sinceramente, relações fraternas maduras e saudáveis é o que predomina na maioria dos presbitérios? Há nos presbitérios disponibilidade de amparo e amor fraterno suficiente para fazer frente ao desgaste provocado pelo exercício do Ministério ordenado?
A solidão é outra realidade que se relaciona diretamente com ansiedade e depressão. Segundo Karen Horney, na base das neuroses está a ansiedade básica, que é a “sensação de ser pequeno, insignificante, indefeso, abandonado e ameaçado num mundo disposto a abusar, ludibriar, atacar e humilhar”. A solidão, ao longo dos tempos, se mantém como um dos grandes temas da vida do presbítero. Ao mesmo tempo que vive em comunidade, por vezes sufocado por reuniões, encontros e celebrações, o celibatário experimenta um tipo de solidão que lhe é característico. Há igualmente os muitos casos em que o presbítero vivencia a solidão enquanto carência de amparo afetivo, de apoio para enfrentar os desafios, e de conforto nas frustrações, desilusões e sofrimentos. Poucas experiências são tão dolorosas quanto a solidão enquanto, por outro lado, poucas experiências são tão necessárias quanto o sentir-se acolhido e amado.
Recordo-me de estar conversando com uma pessoa consagrada, que partilhava uma vivência interior de insatisfação e sofrimento, que poderia classificar como uma “pré-depressão”. Chamava atenção o fato de a origem das dificuldades ser colocada exclusivamente na realidade externa. Havia sempre algo no mundo que estava atrapalhado. Mas era fato que aquela jovem há muito estava carente da nutrição proporcionada pelas relações interpessoais maduras, saudáveis e significativas. Embora vivendo em comunidade, era uma pessoa fundamentalmente solitária. Apresentei-lhe a pergunta: “quem é a pessoa com quem você pode contar, de verdade. Quem de fato faz parte da sua vida”? Não precisou pensar muito para reconhecer que não havia ninguém com quem tivesse um relacionamento que fosse além do que é funcional ou superficial.
Creio que se deva elencar entre as fontes de ansiedade e depressão, no caso do presbítero, os perigos da infidelidade e do escândalo. Em meu tempo de formando era muito conhecido um livro intitulado “os votos, um tesouro em vasos de argila”. A obra se refere aos votos, como diz o título. O presbítero é amado e respeitado. Goza da veneração e reverência da parte do povo, e do cuidado da Igreja. Mas tudo é muito frágil. Além dos limites ligados ao caráter, há as fragilidades psicológicas e os transtornos mentais, há o inconsciente que são fonte constante de ameaça.
Na mesma medida em que é amado e respeitado, o presbítero poderá ser publicamente exposto, e ter não somente a vida destruída, mas ver-se psicologicamente desestruturado. Tudo é muito instável. A cultura da tolerância nem sempre é tolerante com fragilidades dos presbíteros. O índice de exposição acentuou-se significativamente na sociedade mediada pelas redes sociais. Recordo o caso recente de um presbítero que foi injustamente acusado por uma amante de tê-la engravidado. Neste jovem presbítero coexistiam a inconsistência vocacional, e o forte desejo de viver o ministério. A rápida divulgação da falsa denúncia e a imediata exposição de sua imagem causaram-lhe um impacto tal que o conduziu ao suicídio, o que surpreendeu a todos os que o conheciam.
Este fato dramático, aqui relatado muito parcialmente, revela o quanto é complexa a condição do presbítero, homem de Deus e do Evangelho, nesta sociedade das contradições. O fenômeno assustador do suicídio, que tem vitimado um número não pequeno de presbíteros e religiosos, atesta a condição de extrema debilidade em que muitos vivem. Entende-se o suicídio não como o desejo de morte, mas como a tentativa extrema de fuga de um sofrimento que se tornou insuportável, e diante do qual a pessoa se sente só e desamparada. Creio que poucos fatos sejam tão reveladores dos extremos a que podem chegar todas as pessoas, indistintamente, quanto o suicídio de um religioso ou de um sacerdote.
CONCLUSÃO
Embora se tenha dito anteriormente que ansiedade e depressão sejam dois dos maiores desafios do mundo atual, creio que se deva fazer uma correção. Não são o problema. São sinais que apontam para uma realidade mais profunda e complexa, que precisa ser objeto de questionamento e de cuidado, por parte de cada presbítero e da Igreja. Sintomas precisam ser tratados, porque provocam sofrimento. Mas a saúde não se restabelece plenamente quando a atenção e a terapia se dirigem exclusivamente aos sintomas.
Não é necessário investir grande soma de recursos em pesquisas para se chegar à conclusão de que há muitas coisas a serem mudadas no modo como preparamos as novas gerações para o sacerdócio, no modo como nos cuidamos enquanto sacerdotes, e na maneira como o sacerdote exerce o seu ministério na Igreja e no mundo. O percentual de pessoas “ansiosas” e “deprimidas”, no sentido amplo destes termos, precisa ser psico-analisado, entendendo-se a história de dor de cada presbítero como possível fonte de sabedoria, para que tais situações nos ensinem a cuidar melhor do humano, em nós mesmos e nos outros.
Há alguns princípios que são satisfatoriamente conhecidos, e que serão sempre úteis: há pessoas que se ordenam sem a suficiente resistência para o peso que é inerente ao exercício do ministério; há pessoas que se fragilizam em razão de não cuidarem de si mesmas; outras pessoas, por sua vez, se desgastam em razão de colocarem sobre si mesmas carga excessiva de exigência e cobrança.
Há outras variáveis que exercem um papel de primeira importância, conforme acenado anteriormente. Destacaria o perfil do presbitério como “lugar” de existência do presbítero e de exercício do ministério, e as relações que aí se estabelecem, incluída a relação com o bispo diocesano. A psicologia ensina que a família tem por função o cuidado e a proteção de seus membros mais frágeis. Mutatis mutandis, o presbitério deverá assumir função semelhante. Como membros de um presbitério exercemos o ministério que nos foi confiado, e como presbitério temos a responsabilidade de cuidar uns dos outros.
Creio que seja correto afirmar que se multiplicam os casos de presbíteros que se fragilizam, com quadros de ansiedade, depressão e seus múltiplos derivados, dentre eles o suicídio. Vários outros transtornos mentais, evidentemente, afligem ministros ordenados. Há muito esforço, envolvendo muitas pessoas e instituições, para afrontar estas situações, mas entendo que muito mais precisa ser feito. Cada caso de adoecimento e morte deve ser entendido como um apelo à atenção, no sentido de levarmos a sério o cuidado integral consigo mesmo e com os irmãos. Entendo, ainda, que se chegará a conclusões significativas na medida em que considerarmos as variáveis individuais e aquelas estruturais ou institucionais.