Nossas i-maturidades conscientes e inconscientes

Psicologia

Pe. José Carlos dos Santos

Introdução  

Algumas variáveis acompanham o mundo moderno, tornando-se imprescindíveis para a compreensão não somente da sociedade, do modo de configuração da cultura, mas também de nossa organização mental. Creio que seja correto afirmar que vivemos na era da eficiência e da competitividade, em níveis e a partir de perspectivas possivelmente inusitadas, se compararmos com outros períodos históricos. Nascemos e somos educados a partir do imperativo da produção, em todas as áreas. A razão se orienta sobretudo para a produção de artefatos. O professor é avaliado a partir de sua produção intelectual. A criança é inserida o mais cedo possível num sistema de ensino que tem o objetivo de prepará-la para produzir, competir, ser eficiente.

            É verdade que o desejo de eficiência e perfeição estiveram presentes em outros contextos históricos. Contudo, a capacidade de vigilância e controle, sobre a pessoa e a qualidade de suas ações, de seus produtos, atingiram níveis antes inimagináveis.  Há mecanismos que medem a capacidade produtiva, tanto física e psíquica, quanto intelectual; o modo de utilização do tempo, e o exercício de cada atividade, objetivando aumentar a eficiência e consequente produtividade. Não há limites, na atualidade, para a quantidade de recursos, de “ferramentas” colocadas à disposição do sujeito em todas as áreas. São recursos cujo objetivo é facilitar o desempenho das diferentes funções. Contudo, esta facilitação cobra um preço, que é a necessidade de constante aprimoramento e capacitação, que nunca acontecem sem certa dose de desinstalação, sentimento de insegurança, e mal-estar psíquico.

            Num contexto como este, um certo tipo de psicologia foi se tornando imprescindível. A sociedade tem necessidade de pessoas com crescente e quase ilimitada capacidade produtiva. É necessário ser eficaz. Fazer, no menor tempo possível, e considerando as falhas como o mal maior a ser evitado.  Maturidade e saúde mental são compreendidas, muitas vezes, a partir da dinâmica deste paradigma, e por este motivo, a psicologia passou a desenvolver recursos para colocar-se a serviço do sujeito que é produzido por esta organização social.

            Um produto da psicologia que exemplifica esta reflexão são os testes de inteligência, e um certo tipo de utilização que tiveram. Voltados para aferir o quociente de inteligência (Q.I), inicialmente se entendia, equivocadamente, que tais instrumentos tinham a capacidade de separar as pessoas entendidas como privilegiadas, orientadas para o sucesso – aquelas que apresentavam índice significativamente acima da média – daquelas consideradas inferiores, e orientadas a atividades e níveis de vida e produtividade de segunda importância.

            Maturidade significa, então, para muitos, capacidade de produzir. É saudável quem consegue se inserir, com êxito, nesta cadeia produtiva, que configura a sociedade atual. Há uma infinidade de produtos. A dinâmica, contudo, é a mesma. O processo de preparação para a vida adulta, produtiva, profissional, exige um dispêndio de tempo cada vez maior. A criança é inserida no sistema de ensino ainda bebê. E o ponto de chegada, se é que existe, é num futuro sempre mais distante.

            As consequências de semelhante compreensão da vida não são as melhores. Dentre os males que afligem as pessoas, as estatísticas colocam em primeiro lugar ansiedade e depressão, que são transtornos ligados à esfera emocional. Ansiedade pode ser entendida como sinônimo de insegurança. Depressão é sentimento de tristeza e insatisfação, que pode chegar ao nível de fazer com que a vida seja sentida como insuportável. Ansiedade e depressão, e a consequente desorganização da esfera emocional, ajudam a entender o índice altíssimo e crescente de suicídio, em pessoas de diferentes idades, classes sociais, atividades laborativas.

            O contato com o humano, em sua esfera mais profunda, nos permite constatar, contudo, que a mais amadurecida das pessoas carrega em si múltiplas e profundas imaturidades. Neste aspecto, todo tipo de combinação é possível. Há casos de pessoas em que estão presentes extremos de maturidade em determinada área ou dimensão, e um extremo de imaturidade em outra. Poderia ser alguém que tenha atingido nível elevadíssimo de maturidade intelectual, enquanto carrega profunda imaturidade afetiva ou relacional. Infantilidades, neste aspecto, permanecem em pessoas adultas, refratárias a atividades educativas e a experiências potencialmente transformadoras.

            Por tudo isso, entendo que devemos ter o hábito de olhar não somente – ou primeiramente – para a maturidade exigida e que se transforma em meta a ser alcançada, mas para as muitas imaturidades presentes em nós. A psicoterapia mostra o quanto é libertador o simples fato de se aceitar com um ser irremediavelmente imperfeito, mas ao mesmo tempo orientado e em busca da verdade e do bem. Esta aceitação, quando supera a esfera meramente teórica, e se transforma em capacidade de ver a si mesmo objetivamente, na quotidianidade, insere a pessoa na dinâmica da transformação e do crescimento. Como afirmou Rogers em Tornar-se pessoa, “quando me aceito, já estou me transformando”.

Tipologia das Imaturidades

            É possível construir alguma tipologia das imaturidades humanas? Pe. Luigi M. Rulla, falando a partir de uma antropologia interdisciplinar, enumera as imaturidades como sendo de primeira, segunda e terceira dimensão. Sem entrar nos detalhes da “Teoria da Autotranscendência na Consistência”, elaborada por Rulla e colaboradores, na Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, creio que valha a pena recuperar as ideias principais apresentadas por ele.

            Segundo Rulla (1987, p. 575), quanto à maturidade, as pessoas “diferem entre si de acordo com um grau contínuo de maturidade em cada dimensão, que pode ir gradualmente de uma contradição ou desarmonia mínima a uma máxima (…)”. Na primeira dimensão o autor insere as limitações que são “prevalentemente conscientes e, por isso, podem ser superadas com os meios tradicionais de ascese” (Rulla, 1987, p. 443).

            Embora também as imaturidades de primeira dimensão possam variar entre um máximo e um mínimo de desarmonia interna, as principais características são que elas pertencem ao nível da consciência, e que está ao alcance do sujeito superá-las, desde que haja o devido esforço e empenho. Trata-se daquelas dificuldades que estão em nós, das quais somos conscientes, e que continuam presentes porque não fazemos o necessário esforço ou ascese para a superação. A autoanálise nos levará a reconhecer que muitas de nossas fragilidades ou imaturidades são desta natureza.

            Durante o processo educativo, para a constituição da maturidade na primeira dimensão é fundamental a educação para os valores, sobretudo os valores autotranscendentes (morais ou religiosos). Tais valores, para se inserirem na personalidade, precisam ser transmitidos ao educando com clareza, de modo inequívoco. É necessário saber que existem, e o que significam. Ainda, a educação para os valores deve ser acompanhada da educação da vontade e das emoções. A mera transmissão de informações para o intelecto é insuficiente.

            Ainda sobre este aspecto, Pe. Rulla (1987, p. 443) considera que “uma das maiores deficiências do processo formativo esteja justamente na discrepância que as pessoas em formação encontram entre os valores proclamados e os que são vividos pelos formadores”. O educador, em qualquer esfera, não poderá se esquecer de que um componente pedagógico dos mais relevantes é o testemunho de vida daquilo que é ensinado, seja em âmbito pessoal, seja comunitário. A contradição entre o que é ensinado ou proclamado pelos educadores, e o que eles próprios vivem, ou ainda entre o modus vivendi da comunidade, poderá causar prejuízo insuperável ao processo pedagógico.

            Quanto ao crescimento ou maturação nesta dimensão, a maior dificuldade seria a capacidade ou tensão de renúncia, provocada por ter de renunciar a fazer a própria vontade para fazer o que o juízo da consciência aponta como sendo necessário. Em outras palavras, há um conflito interno entre a atração emotiva por aquilo que é meramente agradável, e o que é claramente percebido como um bem em-si mesmo. Quanto a esta questão há muito a dizer, mas basta ter em mente que muitas imaturidades estão ligadas à incapacidade de renunciar ao prazeroso e agradável, mesmo quando são contrários ao que é bom.  Trata-se, neste caso, como acenado anteriormente, de limites na educação da vontade e das emoções.

            Em segundo lugar, Pe. Rulla fala da imaturidade na terceira dimensão, “em que está presente certo grau de desorganização nas estruturas do eu” (Rulla, 1987, p. 451). A imaturidade nesta dimensão configura os diferentes tipos de transtornos mentais, ou psicopatologia. Diferentemente das imaturidades da primeira dimensão, neste caso “o grau de liberdade da pessoa pode ser atingido de acordo com toda uma graduação de maior ou menor gravidade de patologia”(Rulla, 1987, p. 452). Há um grau crescente de ação do inconsciente, e correspondente fragilização do insight e da capacidade de autodeterminação.

            O que fazer nestes casos? Reconhecer a presença de fragilidades radicadas na estrutura do eu, e que muitas delas não são nem conscientes, nem passíveis de serem superadas ou controladas. É o caso em que a pessoa necessita de ajuda, de cuidados. É fundamental avaliar o nível de fragilidade da pessoa, e auxiliá-la a organizar a vida a partir de suas possibilidades, recursos e capacidades.

            Nos casos mais acentuados de fragilidade nesta dimensão haverá a formação de sintomas, como “ansiedade, incapacidade de controlar os próprios impulsos nas decisões e nas relações interpessoais, incapacidade de tolerar frustrações, incapacidade de canalizar as próprias energias para finalidades socialmente úteis e produtivas” (Rulla, 1987, 451). Pode-se perceber que estas imaturidades, quando em níveis agudos, podem incapacitar a pessoa para determinados tipos de comprometimento e responsabilidade, em razão de sua específica organização mental.

            Um outro tipo de imaturidade, pertencente à segunda dimensão no sistema criado por Pe. Rulla, recebe o sugestivo nome de dimensão do bem aparente (Rulla, 1987, p. 455). São as situações em que a pessoa dá sinais de ser amadurecida, saudável e equilibrada, mas este nível positivo de maturação não ultrapassa a aparência e a superficialidade. Na verdade, há contradições e inconsistência intrapsíquicas que podem passar desapercebidas por certo tempo, e sobretudo se o educando não receber acompanhamento próximo, personalizado e de educadores experientes e competentes.

            Estas imaturidades estão ligadas à influência do subconsciente, e provocam resistência à mudança para a dinâmica do bem real. A liberdade efetiva é fragilizada, o que interfere na capacidade de internalização dos valores. Os casos em que uma pessoa tida como muito boa e amadurecida toma atitudes aparentemente incompatíveis com sua pretensa maturidade se insere neste contexto.

            Segundo Pe. Rulla, os componentes subconscientes acima citados fragilizam a capacidade de “escutar” objetivamente, provocando índices mais ou menos acentuados de surdez ou distorção da realidade. A compreensão da realidade passa a ser fortemente influenciada por componentes interiores. O educando se mostra surdo para determinados conteúdos, e compreende outros conteúdos formativos equivocadamente, a partir de sua dinâmica interna. Embora a ação ou comportamento, em muitas situações seja o desejável e possa parecer amadurecido, a motivação permanece fundamentalmente egocêntrica e imatura. E esta dinâmica inconsistente tende a permanecer inconsciente para o educando e muitas vezes para o educador. E tende a se manter ao longo do tempo, conservando um núcleo interno de acentuada imaturidade, na dinâmica do bem aparente.

Conclusão

            A Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1947 definiu saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”[1]. Esta definição, elaborada e aprovada no contexto do pós-guerra, positivamente apresenta a saúde de forma holística. Não é suficiente o cuidado e o bem-estar de uma dimensão, mas da totalidade da pessoa. Contudo, analisada literalmente, à luz do caminho que fizemos até aqui, é correto afirmar que semelhante estado de completo bem-estar integral é humanamente inatingível, e poderia provocar uma equivocada situação interior de insatisfação diante de muitas imaturidades que fazem parte da normal condição humana.

            Dito de outra maneira, saúde mental não é sinônimo de ausência de imaturidades. Somos irremediavelmente imperfeitos e imaturos, e por maior que seja nosso empenho, e mesmo que tenhamos atingido níveis admiráveis de maturação, continuaremos marcados por múltiplas formas de mecanismos interiores imaturos e infantis. Esta é a realidade humana, em toda a sua riqueza, desafio e beleza.

            O sentimento de inadequação, que domina muitas pessoas, deve-se normalmente não a particulares formas de imaturidade ou ausência de suficiente índice de saúde mental. Há uma cobrança externa de eficiência, e a apresentação de um ideal de maturidade que acaba por ser internalizado, e se torna o critério pelo qual a pessoa passa a autoanalisar-se. É grande o risco de que uma pessoa saudável e normal passe a avaliar-se como se fosse especialmente marcada por limites e imaturidades, e por isso inferior às demais pessoas.

            O esquema apresentado pelo Pe. Rulla é útil por nos mostrar que as imaturidades humanas não têm a mesma dinâmica. Há imaturidades, em nós e no outro, que poderiam ser superadas se houve suficiente ascese e empenho. São conscientes, e está ao nosso alcance superá-las com o auxílio da graça. As imaturidades denominadas de terceira dimensão, ao contrário, têm sua origem em processos profundos, no inconsciente, e configuram os transtornos mentais. Em geral, são de difícil superação, e requerem aceitação, amparo e cuidado. Segundo as estatísticas, uma parcela significativa da sociedade está situada neste nível. Há também as imaturidades ligadas ao bem aparente. Há processos mentais subconscientes que reduzem o nível de liberdade, e atingem sobretudo a motivação ligada às atitudes. A maturidade aparente esconde imaturidades que fragilizam a pessoa, nas relações, no exercício de suas funções, no alcance do bem-estar e da realização pessoal. Requerem atenção educativa especial e qualificada, por serem resistentes à mudança.

            Concluo com uma citação do Pe. Rulla, cuja obra fundamenta este texto:

a patologia não é necessariamente impedimento para a vida sacerdotal-religiosa; há Santos canonizados que parecem ter apresentado limitações patológicas em algumas áreas de sua personalidade; a patologia torna-se um impedimento para a vocação quando dificulta gravemente viver ou usar a vocação para o bem das almas segundo os valores autotranscendentes de Cristo, incluindo o fato de praticar a caridade dentro e fora do ambiente comunitário (Rulla, 1987, p. 454).

 

[1]https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_content&view=article&id=14401:health-indicators-conceptual-and-operational-considerations-section-1&Itemid=0&limitstart=1&lang=pt#:~:text=O%20conceito%20de%20saúde%20adotado,ou%20enfermidade”%20(4).

 


Referência:

RULLA, Luigi M. Antropologia da Vocação Cristã: Bases interdisciplinares. São Paulo: Paulinas, 1987.

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