A ambivalência da vida comunitária no Seminário

Formação Presbiteral e Religiosa

Pe. José Carlos dos Santos

Desde o Concílio de Trento, a formação para o sacerdócio acontece numa comunidade formativa, denominada Seminário: “Todo o processo formativo possui uma característica eminentemente comunitária” (Dir., nº. 171)[1]. A preparação para o sacerdócio ministerial “não se percorre de maneira individualista, mas sempre havendo como referência uma porção concreta do povo de Deus”[2], uma vez que a vocação “é revelada e acolhida no interior de uma comunidade eclesial”[3], e forma-se no Seminário. Uma vez ordenado, o presbítero deverá inserir-se na comunidade do presbitério diocesano, exercendo o ministério em fraterna comunhão com os demais presbíteros e diáconos, com o bispo, e concretamente no serviço à comunidade paroquial.

As atuais Diretrizes[4] apresentam claramente os principais objetivos a serem alcançados no cultivo da vida comunitária: definir-se como cristão adulto; firmar-se na certeza de que se consagra para a missão; aceitar e valorizar os vários carismas dentro da comunidade presbiteral; relacionar-se com as pessoas, amando-as com um amor que seja expressão do amor oblativo de Jesus. A comunidade, portanto, é o locus que torna possível o processo formativo, em suas distintas etapas e dimensões, constituindo-se um processo simultaneamente unitário e integral.

Concretamente, contudo, a vida comunitária encerra não poucos desafios, experimentados cotidianamente pelos que se dedicam ao acompanhamento comunitário. O fato de um jovem ingressar no Seminário e aí residir durante anos não significa que esteja passando por um processo de maturação humana e cristã, objetivando o sacerdócio ministerial. Uma comunidade sadia se constituirá numa autêntica “comunidade formativa”. A própria dinâmica comunitária contribuirá para o desenvolvimento integral de seus membros. Infelizmente, entretanto, nem todas as comunidades têm esta natureza, o que nos permite falar em ambiguidade da vida comunitária.

O que se disse anteriormente pode ser aplicado a outros tipos de comunidade, como a família. Um dos objetivos do sistema familiar é o cuidado e proteção de seus membros. Quanto aos membros jovens, a comunidade familiar é chamada a cooperar decisivamente para que se estruturem e amadureçam, de modo a se tornarem adultos saudáveis. Em semelhante situação, a família se configura como “comunidade formativa”. Os pais são educadores fundamentais e imprescindíveis, mas não somente eles. O sistema familiar, em si mesmo, exerce indispensável valência maturativa. Mas, como bem sabemos, famílias disfuncionais concorrem para a fragilização de seus membros, de diferentes modos e intensidades.  Também a comunidade do Seminário, a exemplo do que ocorre com a comunidade familiar, é ambígua, podendo cooperar para a maturação ou a debilitação e inconsistência de seus membros.

Quais os requisitos para que a comunidade do Seminário se estruture de tal modo que consiga exercer sua função formativa? Segundo o Pe. Franco Imoda, da Pontifícia Universidade Gregoriana, a autenticidade da vida comunitária depende da maior ou menor maturidade de cada pessoa, de cada um de seus membros, tanto os formandos quanto os formadores. Segundo o mesmo professor, o componente crucial não são as psicopatologias, que atingem aproximadamente 15% da população. Normalmente o processo seletivo para ingresso nos seminários identifica as psicopatologias mais severas, e aquelas menos aparentes ou latentes tendem a se manifestar e a serem percebidas com o passar do tempo.

Especial desafio formativo oferecem as assim chamadas “imaturidades” ou “fragilidades psicológicas não-patológicas”. Radicadas no subconsciente, este tipo de organização mental cria o que Pe. Rulla chama de inconsistência[5] interna, rompendo a integração do sujeito. Cria-se uma divisão ou conflito intrapsíquico, que provoca a desarticulação das energias internas. O vocacionado, neste caso, direciona parte de suas energias para a vivência dos valores cristãos e sacerdotais. Outra quantidade de suas energias internas, entretanto, é orientada e o orienta em direções opostas aos valores proclamados. Os valores o colocam na dinâmica da autotranscendência, da doação de si, do discipulado e da configuração a Jesus Cristo. As inconsistências o tornam autocentrado, perseguindo o que é agradável, prazeroso, e emocionalmente satisfatório. Estão na base de situações de conflito, frustrações, abandono e diminuição da eficácia vocacional, conforme resulta dos trabalhos de Rulla e colaboradores.

O que se disse anteriormente permite concluir na ambiguidade da vida comunitária, em si mesma. Para que seja instrumento apto à maturação integral de seus membros, deverá sobressair a maturidade dos indivíduos, tanto na dimensão espiritual quanto na organização mental. Imaginemos, a título de exemplo, uma hipotética situação de um jovem vocacionado que ingresse numa comunidade “formativa” constituída por um número significativo de membros frágeis e imaturos, psicológica e espiritualmente. Num semelhante contexto, o ingressante terá sérias dificuldades para progredir em seu processo de maturação. As comunidades saudáveis, ao contrário, tendem a tornar-se formativas, motivando e facilitando o processo de maturação dos membros menos amadurecidos.

A concepção antropológica presente na Ratio Fundamentalis (nº 28) está em sintonia com o que se disse anteriormente. O seminarista, membro da comunidade do seminário é “mistério para si mesmo, no qual se entrelaçam e coexistem dois aspectos da sua humanidade, a serem integrados reciprocamente: por um lado ela é caracterizada por dons e riquezas, plasmada pela graça; por outro lado, é marcada por limites e fragilidades”. Durante o percurso formativo, cada formando deverá ser ajudado a integrar estes aspectos, inserido na comunidade do Seminário, sob o influxo do Espírito Santo. Este trabalho formativo, de natureza psicoespiritual, permitirá ao seminarista “sair de si mesmo, para caminhar, em Cristo, em direção ao Pai e aos outros, abraçando o chamado ao sacerdócio” (RF, nº 29).

E o que coopera para que a comunidade do Seminário seja saudável, amadurecida, formativa? Vários elementos são importantes, e devem ser zelosamente cuidados:

  1. Os formadores são importantes agentes no processo formativo, devendo ter feito um trabalho em si mesmos, objetivando a consciência e a integração das fontes das próprias dificuldades psíquicas e espirituais. Em síntese, é necessário que os formadores tenham atingido satisfatório nível de maturidade integral;
  2. Além disso, os formadores deverão estar preparados para contribuir para a maturação dos candidatos, que invariavelmente experimentarão diferentes tipos de dificuldades e problemas[6];
  3. Zelar para que ingressem na comunidade do Seminário candidatos vocacionalmente motivados, evitando aqueles que buscam o sacerdócio por razões imaturas e inconsistentes;
  4. Estar atento às situações de psicopatologia, manifesta ou latente, observando-se o que prescreve a Ratio Fundamentalis quanto à admissão ao Seminário (nº 189 e seguintes).

Creio que não restam dúvidas e questionamentos quanto à relevância do Seminário, enquanto comunidade formativa. É o ambiente em que a integralidade da formação acontece. Contudo, é igualmente verdade que nem todo Seminário é formativo, sendo possível a existência de comunidades que fragilizam e concorrem para a regressão de seus membros. A constituição de um Seminário enquanto autêntica comunidade formativa deverá ser o resultado do zelo e empenho de todos os agentes da formação, empregando-se os instrumentos disponíveis da maneira mais eficaz possível. Como afirmam as diretrizes (nº 198)

“a maturidade global é uma construção progressiva, em que a ação de Deus e a liberdade humana se integram. A comunidade dos formadores acompanhe diligentemente tal progressividade (…) valendo-se oportunamente da colaboração de pedagogos, psicólogos e outros especialistas de comprovada idoneidade, competência e orientação cristã”.


[1]Diretrizes para a formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil, documentos da CNBB, número 110.

[2]Dir, nº. 171.

[3]Dir, nº. 171.

[4]Dir, nº. 173.

[5]“Há inconsistência quando um indivíduo é motivado por necessidades que estão em dissonância com os valores vocacionais ou então o eu-ideal está em contradição com o eu-atual, subconsciente”. (Rulla, Antropologia da Vocação Cristã, p. 574)

[6]Rulla (Antropologia, p. 475-485) enumera: 1) as dificuldades próprias da idade evolutiva; 2) as dificuldades decorrentes da falta de empenho para viver os valores cristãos; 3) as dificuldades decorrentes das imaturidades psicológicas, não propriamente patológicas; 4) as manifestações de psicopatologias.

FacebookWhatsAppTwitter