A pandemia e os desafios à saúde mental do Ministro Ordenado

Formação Presbiteral e Religiosa

 Pe. José Carlos dos Santos[1]

Introdução

 

Não há dúvida de que vivemos tempos difíceis. Mundialmente, difíceis. Possivelmente, nesta modalidade e proporção, não há equivalência na história da humanidade. Sentimentos como perplexidade, desamparo, temor, insegurança, ansiedade, desesperança, solidão… causados pela pandemia não deixam nenhuma categoria imune. Todos sofremos, de muitas maneiras, em diferentes intensidades e, por muitos motivos. Há a dor causada por presenciar sofrimento e morte, enquanto nos sentimos pequenos e impotentes. E, entre os que sofrem, muitos pertencem à porção do povo confiado aos nossos cuidados, como pastores do povo de Deus. Sentimentos e preocupações por diferentes motivos. Recordo um irmão presbítero que partilhava a crescente preocupação com a situação financeira da paróquia, empenhada em reformas e construções, e por isso, sem reserva financeira para a absolutamente inesperada situação pela qual estamos passando. Preocupação com o povo que sofre, com o evangelho a ser anunciado, com o planejamento pastoral, cuidadosamente construído, com os funcionários que precisam receber, com a própria vida e dos familiares e amigos.

Este breve olhar para a realidade nos remete ao pensamento de Henry Murray, um dos expoentes no estudo da personalidade. Para ele, há duas variáveis a serem consideradas para se compreender a pessoa e sua saúde mental. Naturalmente, deve-se considerar a própria pessoa, sua organização estrutural. Contudo, e é o que desejo salientar, Murray nos ajuda a entender que o ambiente em que vivemos precisa ser analisado, uma vez que nele estão presentes “determinantes efetivos e significativos do comportamento” (LINDZEY, 1986, p. 223). Aos determinantes ambientais do comportamento Murray deu o nome de pressão. O que isto significa? Se uma pessoa goza de bem-estar, equilíbrio e saúde mental, isto se deve aos componentes intrapsíquicos, mas também ao fato de esta pessoa estar vivendo num ambiente favorável. A pressão, neste caso, é benéfica ao indivíduo. Há muitos casos, porém, como na atualidade, em que as pressões causadas pelo ambiente[2] desafiam o equilíbrio e a sanidade até mesmo de pessoas reconhecidamente saudáveis e amadurecidas.

É possível suportar uma certa quantidade de pressão por algum tempo. Viver por muito tempo sob forte pressão, certamente, irá causar diferentes formas de sofrimento e adoecimento psíquico, temporária ou permanentemente. Uma pesquisa, recentemente realizada nos Estados Unidos constata que aproximadamente 36% da população está sofrendo forte impacto na saúde mental em consequência da atual pandemia (Veja, n. 2686, de 13 de maio de 2020). Há sintomas de depressão, chegando à prostração severa, sensação de aprisionamento e ansiedade, em decorrência das ameaças à saúde e ao acentuado risco de desemprego. Pesquisas indicam ainda probabilidade de aumento no índice de suicídio, sobretudo entre pessoas solitárias. No Brasil, embora faltem estatísticas desta natureza, aumentou, significativamente, a procura por atendimento psicológico, feitos, preferencialmente, por meio de recursos eletrônicos.

 

1 – A Saúde Psíquica do Ministro Ordenado

Uma questão a ser considerada diz respeito ao grau de resistência aos agentes estressores, às pressões que tão fortemente atingem também os ministros ordenados. Em razão da peculiaridade que marca nossas vidas, seremos mais resistentes que as demais pessoas? Estaremos, por alguma razão, em condições mais satisfatórias, e por isso, menos expostos às fragilidades e ao adoecimento mental?

Observe-se que também o estado de quarentena pode ser dividido em fases. Na fase inicial se ouvia, no Brasil, que, possivelmente, teríamos algo em torno de 5.000 mortos. Havia uma expectativa “otimista”, presente no discurso de muitos políticos e analistas de conjuntura. Esta fase passou. Prolonga-se o isolamento e aumenta a constatação do despreparo do Brasil para encontrar soluções e caminhos de superação dos problemas que se avolumam. Enquanto Igreja, tivemos Semana Santa e Páscoa sem a presença de fiéis, e não há como fazer previsões seguras quanto ao futuro retorno de nossas atividades.

Quanto à saúde mental dos ministros ordenados, não são incomuns notícias que se referem a fragilidades psíquicas, por vezes, acentuadas, de padres e bispos. Algumas destas notícias causam impacto relativamente grande, tanto sobre os membros da Igreja Católica quanto sobre a população em geral. Há casos de suicídio, depressão severa, transtornos de ansiedade e pânico. Há ainda os transtornos mentais que se configuram como atos criminosos, como a pedofilia. Entende-se que todo pastor tem por função cuidar das ovelhas. Mas, e quando é o pastor que está frágil? E quando o pastor, em lugar de zelar e proteger, provoca dores e feridas…seria simplesmente problema de caráter?

O que dizer sobre estes fatos? Uma pesquisa prolongada e detalhada foi realizada por Pe. Luigi Rulla, psiquiatra e psicólogo italiano, idealizador do Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Gregoriana. Pe. Rulla tinha por objetivo saber se a formação oferecida nos seminários faz com que padres (ou religiosos) se tornem, psicologicamente, mais saudáveis e amadurecidos que as demais pessoas. Nesta pesquisa Rulla e colaboradores, durante vários anos, desenvolveram estudos comparativos de jovens seminaristas, diocesanos e religiosos, com outros jovens não seminaristas, de idades semelhantes, em diferentes países. De acordo com os resultados, a formação que é oferecida nos seminários, sejam eles diocesanos ou religiosos, não faz com que os seus membros sejam, psicologicamente, mais saudáveis que as demais pessoas. Em outras palavras, o seminário não consegue “resolver” ou “curar” nem as fragilidades psíquicas e muito menos os transtornos mentais propriamente ditos, que são refratários até mesmo aos longos anos de permanência e às múltiplas atividades formativas que são desenvolvidas nos seminários, em todo o mundo.  

Há outros estudos que confirmam o resultado do trabalho realizado por Pe. Rulla. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, nos anos 70, concluiu que de 10 a 15% dos padres eram psicologicamente saudáveis, 60 a 70% eram emocionalmente imaturos, e 20 a 25% apresentavam dificuldades psiquiátricas. Estes dados, embora alarmantes, simplesmente afirmam que do ponto de vista da saúde mental, há grande semelhança entre os ministros ordenados e a população em geral. Pesquisas realizadas com a população leiga, em diversos países, chegam a resultados fundamentalmente similares.

As pesquisas anteriormente mencionadas nos permitem afirmar que a fragilidade psíquica dos padres é um reflexo da fragilidade psíquica de nossa população. O jovem que ingressa no seminário é oriundo da sociedade, e traz consigo as marcas de sua história de vida, de seu processo de desenvolvimento psíquico. Segundo os estudiosos, e dentre eles destaca-se o Pe. Rulla, a formação que acontece no seminário, por mais eficiente que seja, não conseguirá atingir as fragilidades psíquicas que estejam situadas no nível do inconsciente. O que é inconsciente precisará de um método específico, técnico e profissional de abordagem, que escapa ao horizonte de abrangência do método ordinário de formação para a vida presbiteral e religiosa.

Diante destes fatos, a atenção da Igreja deverá estar voltada, primeiramente, para o cuidadoso acompanhamento dos candidatos às ordens sacras. O processo formativo deverá ter atenção e acuidade para verificar se o candidato apresenta sinais de que goza de suficiente saúde e maturidade psíquica. O ministério ordenado é fonte de alegria e realização, mas não são poucas as situações de estresse, de pressão e de sofrimento. A situação se torna mais complexa, contudo, pelo fato de que alguns transtornos mentais se manifestam apenas numa fase posterior da vida, por vezes somente depois de passados vários anos da conclusão da formação inicial, e no exercício do ministério sacerdotal. Como acontece com a população em geral, alguns transtornos mentais emergem por consequência das exigências da vida, e a consequente fragilização psíquica.

Tirado do meio dos homens para o serviço dos homens, o ministro ordenado conserva em tudo a humanidade, incluindo as fragilidades psíquicas, por vezes de grande gravidade. Esta constatação exige particular atenção da Igreja e do próprio presbítero, para que o ministro ordenado seja sempre “ponte e não obstáculo para os outros no encontro com Jesus Cristo, Redentor do homem” (Pastores Dabo Vobis, 1992, n. 43).

 

2 – Como enfrentar a pandemia?

A psicologia do profundo nos ensina que o inconsciente é absolutamente cego diante da realidade.  Ele é “o vasto território do psiquismo onde, habitualmente, a razão não penetra; território cuja fronteira não é comumente invadida pela luz da consciência” (MOHANA, 2004, p.11). O que isto quer dizer? Simplesmente, que os ministros ordenados estão sujeitos a todos os tipos de fragilidades psíquicas e transtornos mentais, como as demais pessoas, conforme exposto anteriormente. O inconsciente, desconhecendo a realidade, não se interessa pelo que é conveniente ou adequado em relação à pessoa, às suas funções e responsabilidades, aos valores que se é chamado a internalizar, ao bem que se deveria fazer.  Nas situações de fragilidades psíquicas e transtornos mentais, o inconsciente irá exercer diferentes graus de influência sobre os processos mentais, sendo possível chegar a situações em que assuma o completo controle sobre as funções psíquicas. Quanto mais forte a ação do inconsciente, menor a liberdade efetiva e, consequentemente, mais elevado será o grau de fragilização da pessoa.

Segundo o livro do Gênesis “Deus modelou o homem com a argila do solo” (2, 7). A saúde psíquica é consequência de muitos fatores, mas não é fruto do acaso. Cuidados são indispensáveis. A atuação da Pastoral Presbiteral é, agora, mais urgente que em outros momentos, priorizando as pessoas mais frágeis. Então, objetivamente, o que se pode fazer para minorar o impacto da pressão que sofremos, e preservar a saúde mental[3]?

1 – Cuidar especialmente das pessoas com fragilidade física e mental. Serão as pessoas, provavelmente, com menor resistência e que tendencialmente estarão expostas a significativo aumento do sofrimento psíquico e da acentuação do quadro de fragilidade já existente. Entre as pessoas mais frágeis a WHO (ou OMS) inclui crianças, adolescentes, idosos, e pessoas que necessitem de cuidado físico e mental. A primeira iniciativa é assegurar-se de que não interrompam os cuidados regulares. É necessário continuar o uso da medicação prescrita, a frequência à terapia, e que recebam adequado suporte afetivo, de modo a se manterem emocionalmente estáveis.

2 – Criar rotina de vida saudável. Característica marcante de nossas vidas é a regularidade. Somos construtores de hábitos, por facilitarem o exercício das atividades cotidianas. Por mais livres, ativos e criativos que sejamos, a vida humana é marcada por recorrências e repetições, que correspondem às nossas preferências e à execução de nossas tarefas. Esse conjunto de atividades habituais se torna estruturante, no sentido de colocar em ordem não somente a realidade externa, mas também, e sobretudo, o nosso mundo interior. A quarentena rompeu bruscamente o ritmo de nossas vidas, sendo este um dos fatores que mais coopera para o senso de desorientação, que pode se acentuar, tornando caótico o mundo interior. É urgente, portanto, criar nova rotina diária, que precisa ser mantida. Necessitamos de regularidade: levantar-se e dormir em horários similares todos os dias; manter os cuidados pessoais de higiene; optar por uma alimentação saudável, em horários regulares; exercitar-se regularmente; definir local e tempo para trabalho e para descanso; inserir na rotina atividades prazerosas, recreativas. Em síntese, afirmar a necessidade de rotina (ou cotidianidade) é o mesmo que dizer que a saúde mental está relacionada à “orientação saudável no tempo e no espaço”.

3 – Filtrar a busca por notícias. Precisamos ser seletivos na necessária busca por informações. Os mesmos dados e fatos são transmitidos por alguns veículos de comunicação não, primeiramente, com o objetivo de orientar, mas de forma sensacionalista, para causar impacto, de modo a ter audiência. Há o fenômeno das fake news. A mente precisa de alimento saudável. Os programas e informações sensacionalistas e pouco científicos fazem muito mal. Devemos nos proteger e proteger, sobretudo, as pessoas mais frágeis, dentre elas as crianças, pessoas idosas e doentes. Estes conteúdos causam mal ainda maior em alguns horários, como antes de dormir. Podem contribuir para piorar a qualidade do sono, e para a produção de pesadelos. Concretamente, é aconselhável definir quais canais de informação seguir, e em que horário buscar informações.

4 – Distanciamento físico e proximidade afetiva. O distanciamento físico precisa ser observado, mas com o cuidado de preservar os laços afetivos. Um mal a ser combatido é a solidão, sobretudo pelo fato de se estar habituado à vida de comunidade, ao relacionamento intenso e afetuoso, nas atividades de evangelização. Devemos nos programar para continuar preservando o contato regular com as pessoas próximas, utilizando os muitos recursos que temos à disposição. Esta medida nos fará bem, mas fará bem, igualmente, às pessoas com as quais nos relacionamos. Pensemos nos paroquianos, amigos e familiares, nas pessoas doentes e solitárias, nos enlutados. Estejamos atentos às datas significativas para cada um deles, oferecendo-lhes o calor de nossa presença. Neste aspecto se confirma o princípio segundo o qual é dando que se recebe. Só quem cultiva gestos de amor se sentirá bem quisto e amado.

5 – Cultivar ritmo saudável de trabalho. A mudança na rotina nos impele a encontrar mecanismos para que as funções que nos foram confiadas, enquanto possível, tenham continuidade. A missão continua. Inatividade é outro mal a ser combatido. Num contexto tão complexo como o atual não podemos simplesmente esperar que as coisas voltem à normalidade, para retornar ao trabalho. Temos responsabilidades na Igreja como ministros ordenados, e haverá inquietação interior sempre que nos sentirmos inertes. Poucas coisas são tão realizadoras e estruturantes quanto a sensação do dever cumprido com empenho e zelo. Individualmente, e como presbitério, creio que seja tempo de avaliar como estamos vivendo, as atividades de evangelização que estamos realizando, e buscar métodos mais eficazes para o cumprimento de nossa missão como pastores.

6 – Estar atento aos conflitos pessoais e relacionais. Creio que este seja um dos maiores desafios. Na rotina de vida que desenvolvemos, muitas atividades são de natureza defensiva, para nos proteger do encontro com os conflitos interiores e interpessoais. Não é sem razão que muitas pessoas fogem do silêncio e da introspecção, buscando, no ativismo, evitar o confronto consigo mesmas, com as questões que permanecem sem ser consideradas e resolvidas. Inconscientemente, tendemos a fugir de tais conflitos, porque provocam desconforto, enquanto o correto seria enfrentá-los. Esta nova rotina de vida, com a obrigatoriedade de estar em casa, rompe com os hábitos defensivos que estruturavam a vida, e poderá nos expor aos conflitos, inevitavelmente, presentes até em pessoas muito saudáveis. Quanto a isso, creio que haverá pessoas que irão crescer em qualidade de vida psíquica com esta nova forma de viver. Quem vive a quarentena acompanhado terá igualmente o desafio de trabalhar os conflitos interpessoais que poderão emergir. É o desafio que estão enfrentando muitos casais. Pessoas que se encontravam à noite e nos finais de semana estão juntas por 24 horas, dividindo o mesmo espaço, estressadas, há semanas. Há estudos que falam num provável aumento no número de divórcios depois da quarentena. Por tudo isso, as dificuldades no relacionamento com os colegas com os quais estamos convivendo durante a quarentena precisam ser enfrentadas com maturidade. Caso contrário, o relacionamento poderá se fragilizar profundamente.

7 – Cuidado com bebidas alcoólicas. O vinho, a cerveja e várias outras bebidas alcoólicas fazem parte de nossa cultura, e integram o cardápio da grande maioria das pessoas. Sendo usadas de modo saudável, além de serem prazerosas, criam ocasião para a proximidade e uma boa conversa. Contudo, devemos estar atentos, evitando consumo excessivo. As bebidas (e as drogas), por provocarem alívio rápido e momentâneo, são usadas frequentemente como meio de enfrentar a ansiedade e a tristeza, o tédio, o isolamento e a frustração. “Cerca de 30 a 40% das pessoas com transtorno relacionado ao álcool satisfazem os critérios diagnósticos para depressão” (Kaplan & Sadock, 2.007, p. 429), e “entre 20 e 50% de todos os indivíduos com transtornos relacionados ao álcool também satisfazem os critérios para transtorno de ansiedade” (Kaplan & Sadock, 2.007, p. 429). Portanto, se são inevitáveis, até certo ponto, as alterações emocionais, especial cuidado se deve ter quanto ao consumo de bebidas alcoólicas.  

8 – Controlar o tempo diante do monitor. Os monitores de computador (ou celulares) se tornaram componentes indispensáveis na rotina da maioria das pessoas. Grande parte das atividades presenciais foram transformadas em atividades remotas, utilizando-se tecnologias de comunicação. É uma das maiores mudanças provocadas pelo isolamento social. Sendo úteis e indispensáveis, o tempo diante do monitor precisa ser controlado, evitando-se os excessos. São necessários tempos regulares de pausa destas atividades.

9 – Cuidado com o sono.  A necessidade de sono varia de uma pessoa para outra. Há pessoas que necessitam de 9 a 10 horas de sono por noite, enquanto alguns indivíduos necessitam de aproximadamente 6 horas a cada noite, para funcionar de forma adequada (Kaplan & Sadock, 2.007, p. 810). Estudos feitos durante a pandemia mostram que uma em cada cinco pessoas estão apresentando dificuldades para dormir, com o sono mais curto e agitado. Manter a quantidade regular de horas de sono é essencial para a saúde mental. Há uma série de medidas que são úteis, a maioria delas, suficientemente, conhecidas: manter horários regulares para se deitar e levantar; suspender o uso de bebidas com cafeína e sabor “cola” ao menos 4 horas antes de se deitar; evitar sestas diurnas prolongadas; fazer exercícios físicos; evitar estimulação mental durante a noite (estudos, determinados filmes…); fazer a última refeição ao menos duas horas antes de ir para cama; desligar os eletrônicos ao menos 90  minutos antes de apagar as luzes.

10 – Viver a quarentena como tempo de deserto. Nem tudo é prejudicial no isolamento. Carlos Drummond de Andrade escreveu um poema em que apresenta a vertente positiva da solidão:  

Solidão, não te mereço,

pois que te consumo em vão.

Sabendo-te embora o preço,

calco teu ouro no chão.

(Desperdício)

 

O evangelista Mateus, por sua vez, afirma que Jesus foi conduzido ao deserto pelo Espírito (Mt 4, 1), para ser tentado pelo diabo. O deserto foi um tempo e um espaço muito particulares na vida de Jesus. Jejum e oração por quarenta dias e noites. Foi também o lugar da tentação. Creio que devamos nos perguntar pelas nossas tentações neste tempo de quarentena. Penso que entre elas estarão o fechamento em nós mesmos, na própria casa, e no possível aconchego que ela porventura nos possa proporcionar, e o consequente esquecimento das pessoas, de suas dores e sofrimentos. Os tempos de instabilidade e crise são aqueles em que brotam e florescem marcantes experiências de amor, de solidariedade, de altruísmo. Convém que o cultivo da espiritualidade esteja entre nossas prioridades neste tempo de isolamento e deserto. Ousemos dirigir às pessoas a mesma pergunta continuamente repetida pelo Servo de Deus, Dom Luciano Mendes: “em que eu posso ajudar?”  

 

3 – Conclusão

Recordo o que disse, anteriormente: o fato de sermos presbíteros e diáconos não faz de nós pessoas psicologicamente mais maduras e saudáveis que as demais pessoas. Estamos igualmente sujeitos a desenvolver transtornos mentais que irão provocar alterações mais ou menos profundas em nosso funcionamento mental. Por isso, somos convidados a viver, responsavelmente, na dinâmica do cuidado, consigo mesmo e com o outro.

Entre as variadas formas de adoecimento mental, as mais frequentes são depressão e ansiedade. O humor é, inevitavelmente, atingido. O quanto cada pessoa irá sofrer, a rapidez da recuperação, e se haverá ou não sequelas, não é possível prever. Certamente, contudo, fará grande diferença a maior ou menor responsabilidade com que cuidarmos de nós mesmos e do próximo. Infelizmente, alterações no funcionamento mental que surgem como consequência de eventos difíceis, traumáticos, podem se tornar permanentes. Há pessoas que jamais se recuperam.

Por outro lado, a Cruz é parte integrante da vida cristã. A salvação não aconteceu sem sofrimento. O processo de desenvolvimento de todas as pessoas não acontece sem uma dose significativa de dor, e creio que uma certa quantidade de sofrimento seja necessária para o crescimento e a maturidade. Devemos nos empenhar para que tudo o que está acontecendo coopere para nos tornarmos pessoas melhores, mais maduros e íntegros, psicologicamente e espiritualmente.

Concluo parabenizando esta Arquidiocese pelas iniciativas que estão sendo desenvolvidas, voltadas para o bem-estar integral dos ministros ordenados. Nas provações devemos estar unidos, nos ajudando como irmãos. É imprescindível, como estamos constatando, a dinamização da pastoral presbiteral, com propostas efetivas para a formação permanente e integral dos ministros ordenados.  Como a Igreja afirma “é importante que os fiéis possam encontrar sacerdotes adequadamente maduros e formados”. Em breve, esperamos, a humanidade terá superado mais este grande desafio. Se Deus nos colocou neste particular momento histórico, certamente não foi por acaso. Como ensinou Viktor Frankl, a vida sempre tem sentido. Cada pessoa tem sua própria vocação ou missão específica. Cada um precisa executar uma tarefa concreta, e nisso a pessoa não pode ser substituída nem pode ser repetida.

 

[1] Presbítero da Arquidiocese de Mariana, diretor geral da Faculdade Dom Luciano Mendes. É Bacharel e Mestre em Psicologia (PUG – Roma). Publicações: Dizer o Testemunho I (Org.), Paulinas 2012; Psicologia e Desenvolvimento Moral da Pessoa, Editora Dom Viçoso, 2018.

[2] Entre as pressões elencadas por Murray estão: ausência de apoio familiar; perigo ou desgraça; solidão; falta de companhia. (LINDZEY, 1986, p. 224).

[3] Convido à leitura de “Looking after our mental health”, disponível em https://www.who.int/news-room/campaigns/connecting-the-world-to-combat-coronavirus/healthyathome/healthyathome—mental-health.

 


REFERÊNCIAS

HALL, Calvin S.; LINDZEY, Gardner. Teorie della Personalità. Torino: Bollati Boringhieri, 1986.

MOHANA, João. Padre e Bispos autoanalisados. São Paulo: Loyola, 2004.

ROSARIO, Mariana. Uma luz no Confinamento. Veja, São Paulo,  n. 2686, ano 53, p. 54-59, maio 2020.

RULLA, Luigi M. Antropologia da Vocação Cristã. São Paulo: Paulinas, 1987.

SADOCK, Benjamim James; SADOCK, Virginia Alcott. Compêndio de Psiquiatria: ciências do comportamento. 9a ed. Porto Alegre: Artmed, 2007.

World Health Organization. Looking after our mental health. Disponível em https://www.who.int/news-room/campaigns/connecting-the-world-to-combat-coronavirus/healthyathome/healthyathome—mental-health.

 

 

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