A Psicologia dos Desejos

Espiritualidade e Psicologia

Pe. José Carlos dos Santos

Que os desejos sejam importantes componentes da mente humana é inegável. Fazem parte de nosso ser, de nossa essência, de tal maneira que ausência de desejo é sinal claro e inequívoco de algum tipo de disfunção, de desordem, em nosso funcionamento mental. Desejamos muitas e diferentes coisas, e o desejar antecede, em muito, a nossa capacidade de pensar e de avaliar a qualidade dos objetos desejados. O juízo sobre a conveniência e moralidade de algum tipo de desejo é um processo tardio, e sempre desafiador internamente. O desejo teima em permanecer, em não poucas situações.

Recordo ter lido, durante os estudos de filosofia a estória do rei Midas, da mitologia grega, governador da Frígia. Era invadido pelo desejo de tornar-se extremamente rico e poderoso. Em certa ocasião, teve a oportunidade de fazer um pedido a Dionísio, e pediu que tudo o que tocasse se transformasse em ouro. A fruição do desejo inicialmente o deixou extasiado. Podia ter todo o ouro que desejasse. Bastava um toque para que objetos sem qualquer valor passassem a reluzir. Contudo, Midas percebeu que o seu desejo encerrava uma grande maldição, uma vez que até a sua comida e bebida viravam ouro. Desesperado, pediu novamente ajuda a Dionísio, que o libertasse desta condição, retornando Midas à sua normal condição humana.

O prof. Kiely, da universidade Gregoriana de Roma, em sua tese doutoral apresenta uma hipótese de base, segundo a qual vivemos simultaneamente em dois mundos, o mundo dos desejos e o mundo dos limites. A exemplo do que ocorre na estória do rei Midas, o mundo dos desejos é caracterizado pela absoluta ausência de limites. Neste mundo, tudo é possível. É o mundo da imaginação, da fantasia, dos sonhos, das emoções e dos impulsos. Há então a possibilidade de desejar todo tipo de realidade, e com diferentes intensidades. Adão e Eva desejaram ser iguais a Deus, razão pela qual comeram a maçã. Davi não resistiu aos desejos e encantos pela mulher de seu servo Urias, e em razão disso cometeu graves erros. Salomão, por sua vez, em lugar de deixar-se dominar pelo desejo de possuir riquezas, honrarias e vitórias, desejou e pediu a sabedoria, para bem governar o povo que lhe foi confiado.

É fácil perceber, portanto, que há diferentes tipos de desejos. Na fase inicial da vida prevalecem os desejos de natureza fisiológica. Um bebê não deseja outra coisa senão ser alimentado e estar aquecido. O corpo, nesta etapa da vida, determina o que é ou não desejável. Este tipo de desejos permanece muito potente ao longo de toda a vida: comer, beber, tocar e ser tocado. A sexualidade, por estar radicada no corpo, é também de natureza fisiológica, até ser elevada a outros níveis de motivação e de significado.

Na medida em que o desenvolvimento humano progride, manifestam-se desejos que têm sua raiz na natureza social do homem. Somos seres de relações. A criança progressivamente amplia a capacidade de relacionar-se, partindo da relação inicial com a mãe, com os membros de sua família, até atingir a capacidade de inserir-se na sociedade mais ampla. E desejos sociais muito poderosos se desenvolvem, e passam a coexistir com os desejos de natureza fisiológica. Há o desejo de receber afeto, de ser estimado, reconhecido e amado. Em nossos dias são muito intensos os desejos de fama, aplauso e reconhecimento social, que estão na base de muitos e diferentes comportamentos, levando algumas pessoas ao nível do irracional e do absurdo.

Uma importante estudiosa da psicologia contemporânea, Karen Horney, analisou as características das neuroses, na sociedade pós-freudiana. Dentre os tipos evidenciados, a autora destacou: 1) Necessidade (ou desejo) neurótica de afeto e aprovação: Busca incessante e descontrolada por amor e aceitação dos outros. 2)  Necessidade neurótica de poder: Desejo de controlar os outros e evitar sentimentos de fraqueza. 3)  Necessidade neurótica de reconhecimento e aplauso: Busca por elogios e validação para sentir-se valorizado.  Quanto ao desejo neurótico de afeto, por exemplo, Karen afirma que há pessoas dispostas a fazerem tudo para ter afeto, sendo fragilizada a capacidade de controle, equilíbrio e discernimento. Quanto aos demais tipos de necessidade ou desejo, acontece o mesmo. A propósito, quando o tentador quis desviar Jesus de sua missão, pediu que se jogasse da parte mais alta do templo, exibindo-se à moda de um espetáculo, à vista das pessoas, objetivando fama e aplauso. Qualquer que seja a situação, é necessário maturidade e discernimento para equilibrar semelhantes desejos, enraizados na mente humana.

Há, por fim, os desejos de natureza racional e espiritual. Estes são resultantes do processo educativo, e do desenvolvimento de potencialidades que pertencem exclusivamente ao ser humano, como a capacidade de pensar, de fazer uso da razão, e da liberdade interior. A maturidade nos torna capazes de direcionar nossas energias para metas de natureza cultural, religiosa e humanitária. Sigmund Freud usou o termo sublimação, afirmando que não podemos gastar a totalidade de nossas energias internas meramente para satisfazer nossos desejos instintivos e pulsionais. É indispensável criar um equilíbrio interno, de modo que se consiga fugir de uma dinâmica meramente egoísta e hedonista, transformando em desejos as atividades cultural e humanamente construtivas e elevadas. A Igreja afirma a urgência da educação em nível estético, voltada para o belo e as artes, e igualmente nos impele à educação para o juízo moral, indispensável para discernir se o que é desejado é conveniente, justo e bom.

O mesmo Pe. Kiely, na mencionada tese de doutorado, afirma que os desejos precisam ser confrontados com os limites. Tudo pode ser pensado, imaginado e fantasiado, mas é necessário ter a capacidade de perceber quais desejos ou fantasias são realizáveis, e quais não são realísticos, por diferentes motivos, e necessitam ser reconhecidos como puro sonho, e aceitar que serão inevitavelmente esquecidos.

Assim, há uma inevitável tensão entre desejos e limites, sendo impossível satisfazer tudo o que se deseja. Nisto as pessoas se mostram muito diferentes. Há pessoas que entendem que um determinado desejo não convém, e conseguem renunciar ao objeto desejado de modo relativamente pacífico e definitivo, optando pelo que é avaliado como bom e conveniente. Há pessoas, diferentemente, que desenvolvem intensos e persistentes sintomas de frustração em semelhantes situações. A frustração, quando intensa e descontrolada, traz sérios prejuízos e sofrimento para o funcionamento mental, como se observa em muitas situações.

O cristianismo, embora não utilize a linguagem própria da psicologia, de diferentes maneiras nos orienta para o necessário cuidado com esta importante faculdade humana, a capacidade de desejar. Penso que aqui se inserem os votos de castidade, pobreza e obediência. Devem ser integrados na vida de todos os cristãos, de acordo com a natureza da própria vocação e com o estado de vida para o qual se sente chamado. Os pecados capitais, creio eu, também podem ser entendidos neste mesmo contexto.

Creio que se possa afirmar, ainda, que a organização capitalista da sociedade se vale da exploração dos desejos humanos, em suas diferentes formas. Na verdade, não se vendem objetos, mas são vendidos ilusões e sonhos. Em lugar de olhar para dentro de si, e fazer o esforço de dar nome aos próprios desejos, confrontando-os com os limites impostos pelo mundo externo, pelo que conseguimos e alcançamos, e pelos valores morais, muitas pessoas se perdem diante das pressões sociais. A consequência é enredar-se numa teia de sofrimentos para si mesmos e para as pessoas que lhe são próximas.

Se aplicarmos o conteúdo desta reflexão à condição da pessoa que se prepara para o sacerdócio, para a vida consagrada, ou ao sacramento do matrimônio, percebemos que não poucos são os desafios a serem enfrentados. Será necessário o desenvolvimento de um satisfatório autoconhecimento, que permita construir uma visão objetiva e realista de si mesmo. Perguntas que podem ser úteis são: quais são os valores e as responsabilidades que fazem parte da vida cristã, e da vocação específica pela qual estou optando? E quais são os desejos que, radicados em minha história de vida e personalidade, mais intensamente criam conflitos com os valores objetivos e revelados que sou chamado a internalizar? Como me sinto diante da inevitável necessidade de renunciar? Consigo recuperar a paz interior, e viver serenamente e na alegria, ou a renúncia provoca sofrimentos que me tiram a paz interior?

Como se percebe, há aqui um importante caminho de amadurecimento a ser feito, que requer o empenho pessoal e a ajuda de pessoas competentes e já suficientemente amadurecidas. Como no caso do rei Midas, citado acima, um desejo pensado e sonhado como fonte de felicidade poderá, ao contrário, tornar-se causa de sofrimento e destruição.

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