A saúde mental do Padre

Formação Presbiteral e Religiosa

Pe. José Carlos dos Santos

             No intervalo de uma assessoria para presbíteros, em que trabalhávamos o tema da saúde mental, um dos padres fez o seguinte comentário: “É surpreendente a visão que muitas pessoas têm do padre. Uma senhora, na paróquia em que trabalho, me perguntou se padre também pega Covid. Muitas pessoas não conseguem entender que também os padres estão sujeitos a desenvolver transtornos mentais, como a depressão ou ansiedade”. Recordo uma ocasião em que um senhor pediu informações sobre um determinado padre que anos antes trabalhara naquela paróquia. Respondi, sem dar detalhes, que ele estava em tratamento de saúde. Como o senhor insistiu em saber o que o padre tinha, respondi que era um tratamento contra um quadro de depressão. Surpreso, o senhor comentou que não sabia que também os padres sofriam “este tipo de problema”.

            Embora esta visão idealizada e distorcida do padre seja surpreendente, ela tem uma razão de ser. Poucos serviços recebem preparação tão cuidadosa quanto o ministério sacerdotal. O adolescente ou jovem é entregue à Igreja. A comunidade cristã recebe a notícia de que um de seus membros está no seminário, preparando-se para ser padre. O conhecimento objetivo do que se passa nessa preparação é limitado, reduzindo-se a alguns contatos esporádicos nos períodos de férias. Depois de muitos anos de um processo formativo cujo conteúdo se desconhece, o jovem é ordenado presbítero. É comum, portanto, que a imaginação complete a lacuna de informações, o que faz com que o padre continue sendo, para muitas pessoas, alguém diferente: sua humanidade estaria isenta das fragilidades que afligem a maioria das pessoas, sobretudo aquelas que são decorrentes dos transtornos mentais.

            Infelizmente, a realidade é bem outra. É verdade que a formação para o sacerdócio é prolongada, cuidadosa e tem por objetivo atingir a maturidade integral: física, espiritual e psíquica. Contudo, a natureza humana não é transformada pelo processo formativo, por mais eficaz que ele seja, e o padre permanece tão sujeito ao adoecimento quanto as demais pessoas. Vivemos num período histórico marcado por significativa elevação no índice de pessoas que são acometidas de transtornos mentais. Há estatísticas que afirmam que aproximadamente 20% da população preenche os critérios diagnósticos para algum tipo de transtorno mental. É perceptível o fato de que adolescentes e jovens se mostram menos resistentes ao estresse e às exigências impostas pela vida e, portanto, sendo maior a probabilidade de alguma forma de adoecimento psíquico. Num contexto como este, não é de se esperar que o padre seja exceção. Em sua personalidade estarão presentes as marcas do tempo em que vive, com suas riquezas e fragilidades, uma vez que a graça de Deus não transforma, mas respeita a natureza humana.    

            Colocar alguma ordem, de modo que facilite a compreensão dos transtornos mentais, não é tarefa fácil. Há uma classificação que os divide em neurose, borderline e psicose. O nível mais acentuado de fragilização psíquica é o da psicose (esquizofrenia por exemplo), como se sabe. No nível da psicose perde-se a capacidade de contato com a realidade, fragilizando de forma acentuada o exercício das principais funções mentais, como a capacidade de pensar logicamente, de ter equilíbrio nas emoções e afetos, de estabelecer relações interpessoais saudáveis, etc. É nas psicoses que estão presentes alucinações e delírios. Nos casos em que um padre desenvolva uma psicose, a consequência será a incapacidade, temporária ou permanente, para o exercício do ministério ordenado. Recentemente conheci um padre que está em fase de tratamento do transtorno bipolar. Está sereno, residindo em companhia de outros padres e do próprio bispo, e é visível que conseguiu controlar os sintomas mais graves, mas é também visível que se trata de uma pessoa estruturalmente frágil. O quanto de recuperação é possível atingir nos casos de transtornos mentais que se situam no nível da psicose, não é possível prever. Mas um bom tratamento, conduzido por profissionais competentes, é essencial para diminuir o sofrimento e melhorar a qualidade de vida.

            A neurose, por sua vez, é caracterizada principalmente por um estado de ansiedade difusa e acentuada, contra a qual a pessoa se sente indefesa. Como esta situação se torna muito dolorosa, a pessoa acaba criando um jeito de viver defensivo, para se livrar do sofrimento provocado pela ansiedade, que pode assumir características muito variadas. Há estudiosos contemporâneos que apresentam, entre as principais neuroses de nossos dias, três tipos principais: as necessidades neuróticas de afeto, de poder, e de ser aplaudido e elogiado. Por mais contraditório que possa parecer, dificuldades claramente patológicas ligadas à esfera afetiva e sexual, ao carreirismo e ao desejo de poder, e ao exibicionismo, estão entre os males que historicamente provocam sofrimento na Igreja. Este tipo de neurose costuma se mascarar e camuflar de muitas formas, mas os males que provoca é bem visível e sentido. Há quem diga que de longe o neurótico parece ser uma pessoa sadia e normal, e que é na convivência próxima e prolongada que a fragilidade mental se manifesta.

            Por borderline, por fim, há estudiosos que entendem um tipo de organização mental em que a pessoa oscila entre atitudes e comportamentos normais, equilibrados, e atitudes e comportamentos claramente anormais. A essência do desequilíbrio se situa no campo emotivo e na capacidade de controle dos impulsos. No nível borderline, então, embora a pessoa se mostre equilibrada e normal em algumas situações, em muitas outras haverá surtos de raiva e variados comportamentos impulsivos, envolvendo descontrole da agressividade, no uso de bebidas alcoólicas, no controle da sexualidade, etc., configurando-se um quadro de acentuada instabilidade.  É fácil perceber que transtornos mentais desta natureza irão colocar desafios imensos para o ministro ordenado, por mais virtuoso e bem-intencionado que ele seja.

            Neste contexto é necessário mencionar o suicídio, que acontece em esfera global e mundial em índices muito preocupantes. Citando dados divulgados pela Organização Mundial de Saúde de 2019, um número superior a 700.000 pessoas morre por suicídio anualmente, o que significa que em aproximadamente 5 segundos há uma morte ocorrendo. No Brasil, de acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria[1], ocorreram 13.467 suicídios em 2019, o que resulta em 38 suicídios por dia. O suicídio está ligado ao sofrimento, físico e principalmente psíquico, que se torna prolongado e insuportável, e diante do qual a pessoa se sente desamparada e sem esperança. O autoextermínio não significa que a pessoa prefere a morte. É uma medida extrema objetivando parar de sofrer.  

            Uma informação fundamental para se entender o suicídio é que em 95% dos casos o suicida preenche os critérios para algum transtorno mental, e que os transtornos depressivos estão presentes em 80% dos casos. A situação se agrava significativamente quando o transtorno mental vem associado à dependência de álcool ou ao uso de drogas. E quanto ao suicídio de padres? O que dizer? Se o suicídio é consequência, na maioria das vezes, do sofrimento provocado por transtornos mentais, e como os padres estão igualmente sujeitos a tais transtornos, isso explica a morte por autoextermínio nos sacerdotes. Ocorreram numerosos casos nos últimos anos, e se não houver significativa melhora nos cuidados voltados para o sofrimento psíquico, infelizmente a tendência é que casos assim continuem acontecendo.

            Esta apresentação, extremamente sintética da caracterização das doenças mentais, nos permite perceber o quanto é desafiante o tema do cuidado, e sobretudo se a pessoa que dele necessita é um ministro ordenado. As atitudes do presbítero sofrerão forte alteração e influência dos transtornos mentais, sendo claramente visíveis os diferentes e por vezes acentuados tipos de “desequilíbrios”. E o mais sério é que quando se trata de transtorno mental, a capacidade de controle, de “corrigir os erros” será muito frágil ou inexistente. Além da indispensável ação da graça de Deus, será necessário um percurso terapêutico prolongado, cujo êxito sempre é incerto. Quanto aos ministros ordenados, parece haver um agravante adicional: desde o ingresso no seminário, preparamo-nos técnica e psicologicamente para cuidar das pessoas. Mas em geral temos dificuldade de reconhecer e aceitar nossas fragilidades, especialmente aquelas que são de natureza psicológica.

            Outra questão a se considerar é quanto à escassez de recursos e estruturas para o cuidado dos ministros ordenados que se fragilizam psicologicamente. Ao que me parece, a situação das demais pessoas não é diferente, pelo menos no Brasil. Há alternativas de cuidado para o presbítero fisicamente frágil e doente. Mas o que fazer nos casos em que se tratar de um presbítero que tenha desenvolvido algum tipo de transtorno mental grave, nos níveis acima apresentados? O agravante nestes casos é que a face visível da patologia poderá ser um quadro de comportamento extremamente desequilibrado, em que estejam presentes apego ao poder, desequilíbrio afetivo e sexual, alcoolismo, etc.  Em todos estes casos, não é fácil discernir o tipo de cuidado a ser oferecido.

             Então, o que fazer nestas situações? Difícil ter uma resposta que valha para todos os casos, mas cabe à Igreja zelar para que os seus ministros gozem de satisfatória saúde mental. É necessário investir pessoas e recursos, e preparar estruturas. E não é suficiente cuidar de quem está doente. É necessário cuidar de quem está saudável, preventivamente, de modo a evitar que a fragilização e o adoecimento aconteçam. Em tudo isto, a comunidade cristã ocupa um espaço de grande importância, por ser onde os ministros vivem e exercem o serviço ministerial. Enquanto o evangelho acentua o cuidado que o pastor deve ter para com as ovelhas, há situações em que as ovelhas é que nos edificam pelo testemunho de amor, compreensão e cuidado para com tantos pastores, quando se encontram feridos física ou psicologicamente.


 

[1]     https://www.cnbb.org.br/a-respeito-do-suicidio/

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