Pe. José Carlos dos Santos
Os evangelhos são textos cuja escuta faz parte da vida de milhares de pessoas. São proclamados diariamente. Seu conteúdo se aproxima da unanimidade quanto ao fato de ser fonte de sabedoria, independente de o leitor ser ou não alguém que acredita. Recordo uma professora do curso de letras que afirmava não acreditar em Deus e não ser adepta a nenhuma confissão religiosa, mas que utilizava frequentemente textos bíblicos em suas aulas de literatura. Por isso, os evangelhos não são propriedade exclusiva das religiões e dos religiosos, para se tornarem tesouro que pertence à humanidade. E consequentemente, existem diferentes “leituras” dos evangelhos, algumas delas utilizando métodos hermenêuticos diferentes daqueles que são definidos e homologados pelas tradições religiosas cristãs.
Também a psicologia, ciência moderna, que tem por objeto o estudo da mente e do comportamento humano, tem crescentemente se interessado pelos textos bíblicos. Ao psicólogo é impossível confrontar-se com os evangelhos sem se deixar surpreender por quanto há de riqueza, sabedoria e atualidade em tais textos. Por outro lado, também a psicologia tem uma humilde contribuição a oferecer a quem deseja confrontar-se com os textos escriturísticos. Na psicologia encontramos possíveis “chaves” que poderão ser úteis para nos franquear um caminho que nos torne possível ir ao encontro do Evangelho, de Jesus, e da mensagem que ele nos deseja transmitir.
Parece-me central em Marcos a pergunta “Quem é Jesus”? É um questionamento que pode ser situado no cerne da psicologia da personalidade. Esta importante área da psicologia nos direciona ao conhecimento de si e do outro, da própria personalidade, e daquele com quem nos relacionamos. A relação interpessoal, como sabemos, não se estabelece em nível de profundidade sem que cada membro conheça satisfatoriamente a si mesmo e àquele com quem se relaciona. Ao mesmo tempo que o conhecimento de si e do outro é condição de possibilidade para que a relação aconteça, poucas coisas são tão desafiantes quanto o conhecimento de cada pessoa. Não é à toa que se utiliza com tanta frequência a palavra mistério para se referir ao humano.
Marcos inicia o Evangelho dizendo quem é Jesus (1,1): Ele é o Cristo[1], Filho de Deus[2]. Esta frase nos coloca diante da pessoa de Jesus. Nos permite conhecer o que há de mais profundo em sua personalidade. É uma verdade da qual Jesus se apropriará, conforme a narrativa de Marcos já no primeiro capítulo, e que dará solidez e consistência à vida e à missão de Jesus. Não por acaso, Marcos situa o batismo de Jesus na etapa de preparação de seu ministério. A imagem que Jesus construiu sobre si mesmo, sobre sua identidade, ao longo de seu processo humano de desenvolvimento, foi confirmada no momento do batismo. Aquele jovem, oriundo de uma cidadezinha chamada Nazaré, recebe o batismo do profeta João Batista, o precursor do Messias, e neste momento uma voz do céu lhe confirma quem de fato Ele é: o Filho amado do altíssimo (1,11). É o Batista, então, que vê “o Espírito descer do céu sobre Jesus e que proclama às multidões sua verdadeira personalidade”(Bíblia de Jerusalém 1759, nota d).
Portanto, o processo de preparação de Jesus para o seu ministério tem como auge a confirmação de sua identidade. É uma certeza construída por Jesus, e confirmada pelo Batista, a partir da revelação que lhe veio do altíssimo. Poucas coisas são tão importantes quanto saber quem somos. Em seguida, Marcos apresenta nada menos que a tentação de Jesus no deserto (1,12). Jesus sabe quem é, e consequentemente conhece a próprio vida e missão. As tentações podem ser entendidas como as múltiplas seduções, de que nem mesmo Jesus está isento, cujo escopo é o esquecimento de si, da verdade sobre si mesmo, e da própria missão. Marcos não entra nos pormenores das tentações, como o fazem Mateus e Lucas. Sabemos que o Filho amado do Altíssimo foi tentado, mas também que foi impelido pelo Espírito ao deserto, espaço geográfico e existencial em que lutou e venceu as tentações, permanecendo fiel à verdade sobre si mesmo.
Quanto aos discípulos, porém, será necessário um longo caminho para que lhes seja possível conhecer a verdadeira identidade de Jesus. Um fato é que os discípulos são chamados “para que ficassem” (3, 14) com Jesus, e Jesus lhes dedica a totalidade de sua presença e atenção. Estando constantemente em companhia de Jesus, os discípulos presenciam os múltiplos milagres realizados por Ele. Além de ouvirem o ensinamento que Jesus dirige à multidão, os discípulos são privilegiados com momentos exclusivos de ensinamento e formação. Contudo, como se disse, o processo de conhecimento da identidade de Jesus é longo e lento.
Em muitas passagens, os discípulos se perguntam quem é Jesus. Depois de presenciarem o Mestre acalmando a tempestade (4, 35-41), por exemplo, os discípulos se questionavam sobre a identidade desta pessoa “a quem até o vento e o mar obedecem”. Surpreendentemente, também a família de Jesus pensava que Ele tivesse enlouquecido (3,20), e por isso procurava detê-lo. Ao mesmo tempo, da cidade de Jerusalém desceram escribas (3,22), que eram importantes autoridades religiosas, movidos pela fama deste desconhecido, e a todo momento diziam sobre Jesus coisas que certamente aumentavam a confusão e incompreensão de seus seguidores.
A trama narrativa de Marcos nos apresenta duas importantes revelações sobre a pessoa de Jesus. A primeira delas (8, 29) foi proferida enquanto Jesus e os discípulos faziam uma de suas muitas peregrinações missionárias. Jesus, como bom pedagogo, pergunta: Quem as pessoas dizem que eu sou? Há muitas e diferentes respostas, que são ainda insatisfatórias, embora revelem que Jesus é identificado com os reconhecidos grandes personagens da história da salvação. Interessava, contudo, saber quem Ele era para os discípulos, que Jesus havia não somente chamado, mas aos quais dedicava especial cuidado e atenção. Pedro, em nome dos demais responde: “Tu és o Cristo”[3]. Esta expressão indica que viam em Jesus o ungido, alguém que recebeu uma importante missão, a de tornar-se o rei messiânico. Não por acaso, nasceram entre eles disputas para saber quem se assentaria à direita e à esquerda de Jesus (10, 35) no momento de sua glória[4], ou dentre eles, quem seria considerado o maior (9, 33).
Outra resposta à pergunta sobre a identidade de Jesus está inserida no contexto de sua morte. Embora não deixe de ser surpreendente, há profunda unidade com o todo da obra de Marcos. Logo depois da dramática narrativa da paixão e morte de Jesus, ninguém menos que o centurião, alguém que ocupa importantíssimo cargo no exército romano, afirma que “verdadeiramente este homem era filho de Deus” (15, 39). Faltava aos discípulos o aprendizado de que Jesus é o Cristo, o ungido, para uma missão em cuja essência, enquanto Filho de Deus, está essencialmente presente a entrega total de si, o completo despojamento. Não o poder e a dominação, mas o serviço.
Qual a importância de se refletir sobre a identidade de Jesus? Por que esta questão se mostra tão relevante no evangelho? A psicologia ensina que um dos mecanismos de construção da personalidade é o processo de identificação. Todo bom mestre (carismático) irá exercer um certo nível de influência sobre o discípulo, no sentido de configurar a sua identidade. É o que acontece na relação entre pais e filhos, entre professores e alunos, entre formadores de opinião e a população em geral. A força afetiva que nasce na relação interpessoal desperta na pessoa em formação o desejo de ser igual ao mestre. Os valores mais presentes e cultivados pelo mestre são assimilados pelo discípulo, e passam a fazer parte de sua personalidade.
Os discípulos desenvolvem com Jesus uma relação interpessoal muito intensa, em que o processo de identificação é claramente presente. A admiração pelo mestre brota natural e intensamente, o que faz eclodir simultaneamente um forte conflito. O mestre é muito diferente do que eles desejam que o mestre seja. Em razão disso, há a resistência natural e inconsciente para se abrirem à verdade sobre Jesus e sua missão, uma vez que esta descoberta traz como consequência necessária a desconstrução e a reconstrução da própria identidade. E deverão acolher uma proposta de vida radicalmente diferente daquela que, possivelmente, desejavam viver.
E quanto a nós, discípulos missionários deste tempo? Estamos abertos à construção de uma relação interpessoal com Jesus? Permitimos a Jesus se revelar a nós? Estamos dispostos a pagar o preço exigido pelo conhecimento de Jesus assim como Ele é, ou preferimos nos relacionar com o Jesus cuja imagem passa pela distorção dos nossos desejos, dos nossos sonhos, de nossas ambições?
Textos Bíblicos:
[1] Cristo é “transcrição de termo grego que significa “Ungido”. Ele se aplica em primeiro lugar àquele que recebeu a unção para a realeza (Sl 2,2; Mc 1,9+). Os dois títulos, de “Cristo” e de “Messias”, são equivalentes. (Jo 1,41)” (Bíblia de Jerusalém, pág. 1759, nota b)
[2] Não indica uma filiação de natureza, mas uma simples filiação adotiva (4,3+), que implica uma proteção de Deus sobre o homem que ele declara seu “filho” (Sb 2,18), especialmente o rei que ele escolheu. (Bíblia de Jerusalém, pág. 1759, nota c)
[3] Na passagem paralela em Mateus (16,13) Pedro respondeu: “Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo”.
[4] De acordo com a Bíblia de Jerusalém, equivale a “quando triunfares como Rei messiânico” (pag. 1775, nota a).