Pe. José Carlos dos Santos[1]
Uma característica marcante de nossas vidas é a regularidade. Construímos hábitos. Por mais livres, ativos e criativos que sejamos, indubitavelmente a vida humana é marcada por recorrências e repetições, que correspondem às nossas preferências e à execução de nossas tarefas. Há atividades cujo desempenho não depende de nossas escolhas. A criança vai à escola todos os dias no mesmo horário, e o trabalhador tem de cumprir um específico horário de trabalho. Há também muitas atividades que são organizadas de acordo com nossa deliberação, em função do que consideramos necessário e prazeroso. É o modo como usamos, livremente, a parcela de tempo que nos pertence. Esse conjunto de atividades se torna estruturante, no sentido de colocar em ordem não somente a realidade externa, mas também, e sobretudo, o nosso mundo interior.
O que acontece quando somos forçados a modificar o estilo de vida que construímos? O que ocorre, internamente, quando repentinamente somos forçados a nos organizar de modo diverso daquele habitual e desejado? E quando este novo “habitat” nos oferece menos oportunidades e estímulos, nos distancia fisicamente das pessoas e dos hábitos, nos limita no espaço e nos submete a uma nova rotina que nos expõe ao aborrecimento e ao tédio?
Situações desta natureza não ocorrem com grande frequência, mas creio que invariavelmente sejam experimentadas, ocasionalmente, por muitas pessoas. Pensemos nas pessoas acometidas por diferentes tipos de enfermidades, forçadas a isolamento por vezes muito prolongado. Há ainda os encarcerados, que passam grande parte de suas vidas em celas minúsculas, e com escassas oportunidades, em quase todas as áreas significativas.
Representativa parcela da população de grande parte dos países está em quarentena. Mais ou menos intensamente, estamos envolvidos pelo que se disse anteriormente. Por orientação ou por norma, estamos reclusos em nossas casas, abruptamente impedidos de viver a vida à qual estamos habituados, que construímos, e que, na maioria das vezes, desejamos viver. Permanecer prolongadamente em ambiente restrito não é fácil, podendo provocar sofrimento psíquico mais ou menos intenso se não houver sabedoria para organizar-se, utilizando com critério os espaços e recursos disponíveis. A estrutura interior é fundamental para organizar a realidade exterior e, por outro lado, a boa organização externa protege e confirma o bem-estar interior.
Lembro-me de ter lido que a saúde mental está relacionada com a “orientação saudável no tempo e no espaço”. Este princípio encerra grande sabedoria, embora pareça tão simples. Uma consequência da hodierna quarentena é a de deixar para cada pessoa a responsabilidade de organizar -se no tempo. A vida do funcionário de uma determinada empresa se estruturava a partir dos horários de trabalho e de descanso. O seminarista tem a rotina com os horários demarcados, o que confere ritmo, regularidade e produtividade ao seu dia. A criança se organiza a partir dos horários de ir à escola, do lazer com os vizinhos, da prática de esportes, etc..
Manter-se saudável e produtivo neste período de quarentena requer, portanto, o indispensável cuidado com a organização e utilização do tempo. A vida se torna caótica sem uma saudável regularidade temporal: o horário e tempo de descanso, de trabalho, de diversão, de convivência. A psicologia do desenvolvimento ensina que um dos deveres de quem cuida de um bebê é a adoção de um ritmo de vida que lhe permita estruturar-se, como o horário de se deitar e de acordar, da alimentação, do banho, etc. Portanto, estando há vários dias em estado de quarentena, convém que analisemos se estamos dispondo do tempo de modo saudável, produtivo e, enquanto possível, prazeroso.
Além do tempo, outra variável é o espaço. Configura-se uma tríade: o que fazer? Quando fazer? E onde? Certa vez, visitando uma família, uma criança me segurou pela mão para me mostrar o seu cantinho de oração, e o cantinho de fazer o “para casa”. Mesmo as residências mais simples e humildes podem ser organizadas de modo agradável, com os espaços dispostos de modo a favorecer o desenvolvimento satisfatório e prazeroso de cada atividade, e à saudável vivência de cada momento do dia. Concretamente, onde você vai trabalhar? Qual é o melhor lugar para a oração? Como tornar o quarto – e o horário – de dormir mais agradável? Em uma de suas visitas ao Colégio Pio Brasileiro, e visitando o meu quarto, Dom Luciano me aconselhou a “não ficar estudando por muito tempo no mesmo lugar, porquê se torna mais cansativo”. Então, de que opções de espaço você dispõe? Há como melhorar a organização de cada um deles com os recursos disponíveis?
Naturalmente, a quarentena precisa ser um tempo ativo. A vida não permite desperdício de tempo. Não é à toa que cronos é um deus da mitologia grega, de temperamento violento, devorador, implacável. Portanto, a organização do tempo e do espaço é em função das atividades que devemos realizar, e é nelas que devemos nos concentrar, para elas direcionando as nossas energias. Mesmo estando em casa, o funcionário em homeoffice precisa manter o necessário foco em sua atividade profissional, para isto organizando-se no tempo e no espaço. Para o seminarista, a orientação são as dimensões da formação. Tempo e espaço para os estudos, para a oração, para o cuidado consigo e com os outros, etc. A autonomia na disposição destas variáveis trará desafios maiores para alguns, menores para outros, mas será de grande valia para o autoconhecimento quanto ao nível de equilíbrio e de maturidade que se atingiu.
Merece especial atenção, neste contexto, o fato de em geral se permanecer por muito tempo, em espaço reduzido, convivendo com as mesmas pessoas. E quase sempre, poucas pessoas. A normalidade da vida nos oferece muitas estratégias para evitar os conflitos interiores que se desdobram em fragilidades no relacionamento. É fácil sair de casa quando surge um problema. Pode-se evitar uma pessoa quando a situação está desagradável. Quando não estou bem, invariavelmente mudo de lugar e de atividade. Sair para o trabalho, para os estudos e para o lazer tornou-se mecanismo de fuga de si mesmo, e do desafio de enfrentar o que nos distancia do outro. Somos desafiados a estar em casa, a manter a proximidade e a convivência, e a enfrentar com maturidade as fragilidades que residem em nós e no outro.
O evangelista Mateus afirma que Jesus foi conduzido ao deserto pelo Espírito[2], para ser tentado pelo diabo. O deserto foi um tempo e um espaço muito particulares na vida de Jesus. Jejum e oração por quarenta dias e noites. Foi também o lugar da tentação. Creio que devamos nos perguntar pelas nossas tentações neste tempo de quarentena. Penso que entre elas estão o fechamento em si mesmo, na própria casa, e no possível aconchego que ela porventura possa proporcionar, e o consequente esquecimento das pessoas, da situação de sofrimento de tantos. Os tempos de instabilidade e crise são aqueles em que brotam e florescem marcantes experiencias de amor, de solidariedade, de altruísmo. Ousemos dirigir às pessoas a mesma pergunta continuamente repetida por Dom Luciano: “em que eu posso ajudar?”
[1] Padre José Carlos dos Santos é padre e psicólogo. Atualmente exerce as funções de Diretor da Faculdade Dom Luciano Mendes, em Mariana – MG, onde também atua como professor. Já trabalhou durante um ano na Congregação para o Clero, em Roma, na Itália. Ele presta ainda diversas assessorias em diversas dioceses do Brasil, ajudando na formação permanente do clero.
[2] Mt. 4, 1.