Padre José Carlos dos Santos
Um jovem iniciou um percurso vocacional depois de uma infância em que recebeu formação religiosa saudável em sua família, e de ter realizado diversas experiências de trabalho pastoral em sua comunidade paroquial (consistência). Estava motivado a doar-se, a exemplo de Jesus Cristo, aos mais pobres e necessitados (eu-ideal). Outro componente que disputava o controle de seu funcionamento mental era o sentimento de inferioridade (eu-atual). Inconscientemente (eu-latente) o rapaz procurava compensar sua inferioridade pela constante busca de autoafirmação (inconsistência). Eram muito importantes para ele os postos e as funções de destaque. Internamente estava fragmentado. Parte de suas energias e esforços o direcionavam para a vivência dos valores proclamados, mas grande parte era consumida de modo egocêntrico, procurando provar para si mesmo e para os outros que é alguém que tem valor.
Uma questão com a qual todas as pessoas ligadas à vida cristã se confrontam, inevitavelmente, é com a conhecida tensão entre o eu-ideal e o eu-atual. Embora não sejam utilizados estes mesmos conceitos, a este respeito a Igreja assim se expressa (Ratio Fundamentalis, n. 28):
Durante o percurso formativo rumo ao sacerdócio ministerial, o seminarista se apresenta como um “mistério para si mesmo”, no qual se entrelaçam e coexistem dois aspectos da sua humanidade, a serem integrados reciprocamente: por um lado, ela é caracterizada por dons e riquezas, plasmada pela graça; por outro lado, é marcada por limites e fragilidades. O compromisso formativo consiste em procurar ajudar a pessoa a integrar estes aspectos, sob o influxo do Espírito Santo, em um caminho de fé e de progressivo e harmonioso amadurecimento dos mesmos, evitando a fragmentação, as polarizações, os excessos, a superficialidade ou a parcialidade.
A experiência no acompanhamento dos seminaristas nos coloca cotidianamente diante desta realidade. Presenciamos, ininterruptamente, o fato de ingressarem nas comunidades formativas vocacionados bem-intencionados, que se empenham retamente para integrar os próprios limites e viverem motivados pelos valores propostos pelo evangelho e pelo próprio ideal vocacional. Dentre estes, contudo, ao final de um período significativo de empenho sincero e decidido, não são poucos os que se mostram desanimados em razão do fracasso diante da tarefa de superação de limites que por vezes tornam desaconselhável o prosseguimento no processo formativo.
Por serem “mistério para si mesmos”, há situações ainda mais desafiadoras, em que os formandos nem ao menos conseguem perceber a distância que existe entre o ideal vocacional proclamado e as próprias atitudes em que tais ideais deveriam estar encarnados. Quanto à equipe de formadores, na maioria das vezes a experiência lhes permite perceber que o vocacionado não está progredindo satisfatoriamente. Contudo, na maioria das situações lhes faltam clareza para identificar e dar nome ao que está acontecendo, bem como o conhecimento das intervenções pedagógicas necessárias para auxiliar os formandos no exigente caminho de integração interior.
Um exemplo de inconsistência inconsciente. Frequentemente, noviços e seminaristas se atribuem, em questionários autodescritivos, ideais, valores e atitudes específicas da vocação religiosa e sacerdotal. Assim, um noviço que manifesta possuir atitude de respeito e deferência própria do voto de obediência, afirmará possuir valores como “cumprir o meu dever”, “ser atento ao que determinam os superiores”. Ele poderá estar motivado, contudo, precisamente pela necessidade dissonante de dependência afetiva, criando-se a expectativa de que sendo bonzinho, obediente e cumpridor dos deveres, receberá em troca o afeto e a proteção de que tanto necessita. Neste caso, haverá oposição entre os valores ou atitudes manifestas por uma parte, e necessidades subconscientes de outra. A presença desta motivação inconsistente tende a formar atitudes de submissão, em cujo cerne há oposição entre valores do eu-ideal e necessidades do eu-latente. O comportamento, contudo, na maioria das situações será o de obediência, em que a necessidade dissonante se manterá “escondida”, pouco aparente. Em tal caso, tem-se uma inconsistência inconsciente.
É importante perceber, ainda, que esta realidade antropológica marcada pela tensão entre eu- ideal e eu-atual, ou entre “dons e riquezas e limites e fragilidades”, não atinge apenas os que estão nas fases que configuram a formação inicial. São frequentes as situações envolvendo sacerdotes e religiosos, já com anos de formação, que permanecem com limites que fortemente lhes diminuem a liberdade interior, indispensável para a plena adesão aos valores autotranscendentes. Nestas situações, comumente a vivência da consagração se torna uma experiência difícil. Há uma sequência interminável de conflitos e não poucos sofrimentos, podendo culminar em alguma forma de “equilíbrio neurótico” ou no abandono de uma consagração a Deus sinceramente desejada e realizada.
Elementos compreensivos
Os elementos que nos possibilitam compreender (e visualizar) a prevalência de consistências ou inconsistências na organização mental de um vocacionado, em nível de profundidade, nos levam a retornar a alguns dos conceitos elaborados por Pe. Luigi Rulla, da Universidade Gregoriana. Considerando a grandeza do ideal de vida proposto por Jesus Cristo ao vocacionado, é fácil perceber que semelhante vocação exigirá o empenho da pessoa em sua totalidade, objetivando a atualização e a harmonização de suas potencialidades. Utilizando as palavras do Pe. Rulla, o vocacionado deverá autotranscender-se teocentricamente.
A história de vida do candidato, contudo, poderá configurar uma estrutura mental que irá apresentar sérias dificuldades para a almejada autotranscendência. A doação total de si mesmo poderá encontrar, no cerne do próprio vocacionado, diferentes e fortíssimas resistências tanto ao esforço do próprio candidato quanto à ação da graça de Deus. Quando refletimos sobre as necessidades psicógenas[1], que são “potencialidades naturais inerentes ao homem” (Rulla 1987, p. 575), cuidadosas pesquisas mostram que se distinguem, havendo algumas que são qualificadas como vocacionalmente dissonantes, ou seja, que entram em conflito com os valores vocacionais fundamentais. Assim, há inconsistência quando “um indivíduo é motivado por necessidades que estão em dissonância com os valores vocacionais ou então o eu-ideal está em contradição com o eu-atual, subconsciente”(RULLA, 1987, P. 574).
Objetivamente, então, a relação entre necessidades e valores, entre o “importante para mim” e o “importante em si”, que são o pano de fundo das atitudes, torna-se o componente central para a formação dos vocacionados, e para a própria vida do consagrado.
Diante de cada atitude, pelo que se expôs anteriormente, a pergunta que se deve colocar é se ela é predominantemente expressão dos valores que constituem o eu-ideal, ou a satisfação de necessidade (ou necessidades) do eu-atual, em nível consciente ou subconsciente. Roger Champoux nos auxilia na compreensão desta realidade, com a seguinte constatação: “The existence of the latent-self complicates the situation. The attitudes of the subject are not only the expression of his values, but may also come from his conscious or subconscious needs. In other words, the ideal-self may be, in part, the projection of the latent self”[2].
Clareando o significado desta afirmativa, o referido autor apresenta o exemplo em que uma atitude de humildade e respeito diante da opinião de uma pessoa, em lugar de ser expressão do valor da caridade cristã, pode ser consequência de uma necessidade, como dependência afetiva, ou uma forma de dar, de oferecer, meramente para receber algo em troca, o que é oposto ao sentido profundo da caridade cristã. Ainda, um forte sentimento de inferioridade pode ser o motivo desta atitude.
A possível existência de uma inconsistência central entre o eu-atual e o eu-ideal, e que muitas vezes foge à compreensão da pessoa, estabelecendo-se em nível inconsciente, nos ajuda a compreender os limites e desafios que mencionamos anteriormente, e que experimentamos muitas vezes em nós mesmos.
Podemos[3], de modo sintético, dizer que “consistência e inconsistência vocacional são vistos como a situação em que a pessoa é motivada por suas necessidades conscientes ou subconscientes, seja de acordo ou contra valores vocacionais objetivos (e atitudes)” (RULLA, 1990, p. 59). Teremos consistência quando a pessoa é motiva por necessidades que estão em acordo com os valores vocacionais e, na situação contrária, inconsistência.
Necessidades Dissonantes e Neutras
As necessidades são tendências para a ação, derivadas de alguma forma de deficiência do organismo ou de potencialidades naturais. Um exemplo facilita a compreensão. A necessidade de afeto é uma necessidade, que irá criar uma específica tendência à ação. Poderá ser expressão da natural potencialidade para construir vínculos afetivos, ou poderá ser expressão de uma história marcada pela privação de afeto.
A presença de alguma forma de deficiência faz com que a ação resultante desta tendência tenha primariamente acentuado valor ou importância subjetivos, enquanto são direcionadas para suprir aquela deficiência. Outra característica enfatizada pelo Pe. Rulla é que as necessidades não são derivadas de estruturas sociais ou modelos culturais, mas são tendências inatas[4], podendo ser viscerais ou inerentes ao nível fisiológico, e psicogênicas ou inerentes ao nível psicossocial.
E quais são as necessidades psicossociais vocacionalmente relevantes? Há distintas listas classificando as necessidades fundamentais para o ser humano. As pesquisas realizadas por Rulla e colaboradores no campo vocacional levaram à definição de um elenco de necessidades, tendo como referência o trabalho desenvolvido por H.A Murray[5].
Vocacionalmente dissonantes:
Vocacionalmente neutras:
Definição das consistências e inconsistências
Na obra do Pe. Rulla encontramos uma ampla formulação deste tema[6], que podemos sintetizar do seguinte modo:
Conclusão
A constatação destas inconsistências descortina um novo horizonte para a consideração das atitudes do vocacionado diante dos valores evangélico-institucionais fundamentais. Em lugar de fazer uma consideração meramente em termos de virtude ou pecado, como se tudo se trata-se simplesmente do empenho do candidato, de sua boa ou má disposição, somos orientados a perceber que existem vários outros elementos complicadores, que por vezes escapam à percepção do próprio candidato.
A ação de necessidades inconscientes, e a confirmação de que exercem influência sobre a liberdade do vocacionado, leva-nos a nos colocar a pergunta sobre a maturidade da vocação em termos de sua consistência ou inconsistência. É importante, ainda, certificar-se se a inconsistência é consciente ou inconsciente, a fim de que uma decisão livre, em vista do crescimento, seja possível.
Outro elemento significativo é em relação à centralidade da inconsistência. É necessário perceber que lugar a inconsistência ocupa na vida do vocacionado. Há a possibilidade de uma necessidade dissonante ocupar o lugar devido aos valores, tendo como consequência uma vida vocacional mal adaptada, distante da eficácia vocacional e da autorrealização, por vezes culminando no abandono do sacerdócio ou da consagração religiosa.
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[1]“As necessidades podem ser viscerógenas (inerentes ao nível fisiológico) ou psicógenas (inerentes ao nível psicossocial)”. Rulla AVC I, página 575.
[2] Ver Rulla, Psychological Structure and Vocation, página 8.
[3] Ver Rulla, Depth psychology and Vocation, página 59.
[4] L.M. Rulla, AVC, I, 480.
[5] L.M. Rulla, AVC, I, 465-467.
[6] Confira a indicação no glossário da AVC I, páginas 518-519.
[7] Ver Rulla, Psychological Structure and vocation, página 9.