Pe. José Carlos dos Santos
A Igreja sempre esteve particularmente solícita para com tudo o que se refere à formação dos candidatos ao Sacerdócio Ministerial. A consideração da história da formação presbiteral nos apresenta a diversidade de formas concretas segundo as quais a Igreja continuamente se tem empenhado no acompanhamento das vocações ao Sacerdócio.
Nos últimos anos, a Igreja nos tem oferecido significativo número de documentos, considerando aspectos diversos do itinerário formativo. Tais documentos, sobretudo da Pastores Dabo Vobis aos nossos dias, nos orientam a propor um itinerário formativo cujo objetivo é formar presbíteros para os nossos tempos, com suas múltiplas riquezas e seus não poucos desafios.
Atualmente, a título de exemplo, a formação é entendida, em primeiro lugar, como processo. É necessariamente gradual, adaptada à pessoa e ao seu ritmo de desenvolvimento, mais ou menos efetivo e veloz. Outro princípio, conexo ao anterior, é a integralidade[1]. A formação sacerdotal não pode prescindir do desafio de atingir a pessoa, em suas múltiplas dimensões. No passado se consideravam primordialmente as dimensões espiritual e intelectual, com preocupação significativamente menor para com os outros aspectos que constituem a pessoa. Somos atualmente conscientes de que “sem uma oportuna formação humana, toda a formação sacerdotal ficaria privada do seu necessário fundamento” (PDV, n. 43).
Seguindo as linhas mestras do pontificado do Papa Francisco, as recentes “Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil” (Doc. CNBB nº.110) acentuam a premente necessidade de se desenvolver um “acompanhamento sistemático sobre a formação da personalidade dos seminaristas” (nº. 143). Esta formação deverá acontecer, prioritariamente, na etapa do discipulado. O documento recomenda, dada a especificidade deste trabalho formativo, que os formadores agreguem a assistência especializada de profissionais de diferentes áreas (nº 143). O documento acentua, de modo enfático, os prejuízos para o conjunto da formação, caso este objetivo não seja atingido: “Uma personalidade pouco estruturada e/ou pouco equilibrada que resista às propostas e estímulos de crescimento oferecidas pela formação pode comprometer o crescimento de um inteiro grupo durante o itinerário formativo.” (Doc. 110 CNBB, nº143).
A reflexão sobre o desenvolvimento humano, portanto, seguindo a Ratio Fundamentalis e a Nationalis, deverá preceder a elaboração do projeto formativo dos seminários. Dada a sua importância e natureza, deverá perpassar, embora de formas diversas, todas as etapas do itinerário formativo. O requisito para que se apresente uma proposta consistente de desenvolvimento humano é a construção de uma adequada compreensão da pessoa. O seminarista, como todos os seres humanos, é antes de tudo um mistério. “À diferença dos anjos e dos animais, a pessoa humana é um ser que se situa no limite de dois mundos: o atual e o ideal. O homem é feito de liberdade e de constrição, de projetos, iniciativas e de resistências”[2].
Na realidade antropológica, então, convivem polos diversos e interconectados: a sua realidade contingente, marcada por limites e fragilidades e, contemporaneamente, o anseio pelo infinito, o ser aberto para o que o supera, para a verdade e o bem e, em definitivo, para com Deus. Trata-se de dois mundos que sempre estarão presentes na pessoa. Como afirma Manenti (2003), o homem não é todo liberdade, sonhada por Sartre, que lhe permitiria inaugurar, em cada momento, uma outra existência, mas não é também aprisionado em correntes tais que o tornam totalmente prisioneiro do mundo e do passado, como ao contrário afirmava Freud. Permanece um ser capaz de ideais e de valores.
O processo formativo, para que haja desenvolvimento, não pode desconhecer esta realidade antropológica. O empenho pedagógico terá por meta cooperar para a necessária integração, em cada formando, destas duas realidades, ao longo do itinerário de fé e vida. O seminarista, por sua vez, é chamado a sair de si mesmo para andar na direção de Jesus e dos outros, abraçando o chamado ao presbiterado, esforçando-se sobretudo para alcançar uma síntese interior serena e criativa, entre as próprias qualidades e limites. Uma pedagogia vocacional eficaz age sem fragmentar, sem polarizações, evitando excessos ou parcialidades, de modo que o resultado seja a integração subjetiva.
Uma questão a ser esclarecida diz respeito ao télos do desenvolvimento da pessoa, no contexto da formação sacerdotal. Segundo a PDV (nº. 42) o objetivo da formação é “conduzir ao sacerdócio só aqueles que foram chamados e levá-los adequadamente formados, ou seja, com uma consciente e livre resposta de adesão e envolvimento de toda a sua pessoa com Jesus Cristo (…)”. O ponto de chegada da formação seria: “viver o seguimento de Cristo como os apóstolos” e “deixar-se configurar a Cristo Bom Pastor, para um melhor serviço sacerdotal na Igreja”(PDV, nº. 42). A maturidade vocacional capacitará o vocacionado para dar uma resposta pessoal à “questão fundamental de Cristo: Tu amas-me? A resposta, para o futuro sacerdote, não pode ser senão o dom total da sua própria vida”. (PDV, nº. 42)
O acompanhamento de um ser tão complexo requer formadores adequadamente preparados para oferecer o necessário auxílio, o discernimento e a orientação no não fácil caminho até a maturidade. Os elementos antropológicos anteriormente apresentados nos fazem perceber que, em cada pessoa, há a configuração de uma específica dialética de base, um componente de luta inevitável e jamais plenamente solucionável. Há o chamado de Deus, o movimento em direção ao absoluto, porém todos permanecem “pessoas divididas em si mesmas” (MANENTI, 2003). Portanto, cada formador
tenha a sensibilidade e a preparação psicológica adequadas para estar, tanto quanto possível, em grau de perceber as reais motivações do candidato, de discernir os obstáculos na integração entre a maturidade humana e cristã e as eventuais psicopatologias. (Orientações para a utilização das competências psicológicas, nº. 4).
Concretamente, quais seriam os princípios, elaborados a partir da psicologia do desenvolvimento humano, que poderão ser úteis ao formador no desempenho de sua delicada missão?
Compreensão integral do desenvolvimento. O formador deve estar atento para não identificar o desenvolvimento, algumas vezes notável, de componentes específicos e isolados da personalidade, com o desenvolvimento da pessoa. De semelhante confusão poderiam advir consequências danosas. Um candidato poderia atingir, por exemplo, elevado desenvolvimento cognitivo, da inteligência, com admirável conhecimento da filosofia ou da teologia, e permanecer sem o necessário desenvolvimento em outros aspectos importantes da personalidade, como o equilíbrio afetivo, sexual e relacional. Nestes aspectos, o formador deverá perguntar-se se o candidato conseguiu atingir, nas diversas dimensões e componentes da personalidade, o nível esperado, necessário e satisfatório de desenvolvimento.
A dimensão dos valores naturais. São os valores ligados à natureza humana em si mesma, cujo desenvolvimento configura personalidades equilibradas, fortes e livres, capazes de carregar o peso das responsabilidades pessoais. A fragilidade nestes valores conduz a pessoa ao polo da patologia. A especificidade da vida sacerdotal requer acurada atenção para com estes valores, cujo desenvolvimento é favorecido por adequada educação. Os documentos da Igreja que dizem respeito à formação presbiteral, entre os valores naturais, sublinham: a) a maturidade afetiva, entendida como capacidade de amar: Na Encíclica Redemptor Hominis (nº. 10) o Papa João Paulo II afirma que o homem não pode viver sem amor, um amor pelo qual doa a si mesma ao outro, e o acolhe. No desenvolvimento afetivo a pessoa atinge a ortopatia, a capacidade de equilíbrio no sentir e no comunicar os seus sentimentos. b) A maturidade sexual, cuja presença torna a pessoa capaz de renunciar, ser vigilante, prudente, e ter estima e respeito nas relações com homens e mulheres, de todas as idades. c) A maturidade nas relações interpessoais: o presbítero deverá ser capaz de construir relações profundas, satisfatórias e saudáveis com todas as pessoas, com homens e mulheres, crianças e anciãos. As relações interpessoais são exigência da natureza humana, sendo impossível a realização interpessoal e no ministério sacerdotal sem a capacidade de viver relações interpessoais sadias e profundas. A educação para a verdadeira amizade tornou-se, por tais motivos, uma necessidade. d) Constância e qualidade do trabalho: Diversas atividades exigem maior empenho, físico e sobretudo psicológico. Estas atividades nos oferecem um bom sinal da maturidade que a pessoa conseguiu atingir. Na formação, os seminaristas precisam ser educados para uma vida de doação, de empenho e sacrifícios. O cansaço e as diversas formas de desafios são presença constante no Ministério Sacerdotal. A vida do presbítero nunca foi fácil, e requer capacidade de suportar o fardo, com uma suficiente paz interior, das atividades que lhe são conexas. e) O controle das pulsões e da agressividade: estas duas realidades são componentes da natureza humana, e devem ser objeto da autoconsciência e do autocontrole. A pergunta não é se existem, mas como as pulsões se manifestam, e qual sua intensidade. f) Uma autoestima que seja realista, objetiva e substancialmente positiva.
A capacidade de mudar. Desenvolvimento significa, em síntese, um certo tipo de mudança. Por isso, o formador deve estar atento para perceber se o candidato é aberto a mudanças, se as mudanças esperadas estão acontecendo, se se empenha para que haja crescimento, ou se é uma pessoa rígida, se não demonstra capacidade de mudar-se. Alguns candidatos, como sabemos, depois de alguns anos de ingresso no seminário continuam exatamente a mesma pessoa, incapazes de tirar proveito do itinerário formativo do qual fazem parte. Como nos ensina a antropologia, o homem é processo, em contínua construção de si mesmo.
A pessoa é única, irrepetível. Este princípio é fundamento da formação personalizada. Não há duas pessoas iguais, com as mesmas características, positivas e negativas. Por isso se diz que a pessoa é mistério, e cada relação interpessoal, incluídas aquelas de cunho pedagógico, têm características específicas. A subjetividade deve ser reconhecida e respeitada. O formador será desafio a conhecer cada formando em sua singularidade, e além das propostas formativas dirigidas ao conjunto dos formados, muitas vezes serão necessárias intervenções pedagógicas direcionadas às peculiaridades dos formandos.
O indivíduo não é uma tabula rasa. A construção da personalidade não se inicia no vazio, no nada, mas das características hereditárias, do temperamento. Diversas pesquisas nos demonstram que as pessoas são diferentes já no nascimento, e é desta base hereditária que a personalidade se constrói. Por isso, as pessoas responderão diversamente às propostas pedagógicas, com desafios e recursos diversos. A tendência é que este fundamento inato da personalidade se mantenha ao longo da vida. O autoconhecimento, por sua vez, tarefa do formando, será grandemente enriquecido pelo conhecimento das variáveis familiares que poderão estar presentes na própria personalidade.
A influência da cultura, do ambiente, da família. A personalidade é o resultado da ação da cultura, do ambiente, e sobretudo da família sobre o indivíduo e os seus componentes hereditários. Por isso, é imprescindível conhecer a cultura e o ambiente onde a pessoa se desenvolveu, estando atento às suas características determinantes. A família terá, naturalmente, um papel particularmente importante na construção da personalidade: os pais, com suas características, os seus valores, o estilo de educação que foi adotado, o tipo de estrutura familiar, o modelo de interação entre os membros, etc.
A importância dos primeiros anos. Sendo o período de maior fragilidade, a psique infantil deverá receber cuidado especial dos adultos, de modo a ser protegida dos acontecimentos que a criança não esteja ainda preparada para enfrentar. Uma entre as funções da família é proteger os seus membros mais frágeis, e oferecer-lhes adequada preparação para enfrentar os desafios e obstáculos da vida. Um percurso educativo necessário é o conhecimento da própria história, por parte de cada seminarista, e da história de vida dos seminaristas, pela equipe de formadores. O seminarista deverá re-viver a história pessoal, com o objetivo de aprofundar o conhecimento de si mesmo, das feridas que os acontecimentos da vida lhe provocaram, e com o objetivo de acolher com amor todos os fatos de sua história. Os formadores, por sua vez, deverão aprofundar o conhecimento da história de vida do seminarista, particularmente do período da infância. Seria uma gravíssima falta de cuidado admitir e manter no seminário um candidato ao sacerdócio sem um profundo conhecimento e uma acurada análise de sua história pessoal.
O desenvolvimento de um estilo de expressão. O desenvolvimento humano implica na definição de um estilo de personalidade específico e com características irrepetíveis. Cada pessoa tem o seu modo de ser no mundo. Em cada estilo há características positivas e negativas, que a pessoa deverá tornar conscientes, e assumir responsabilidade sobre elas. Por isso, o formador precisa ser atento não às atitudes, aos comportamentos, mas deverá esforçar-se para colher neles o estilo de personalidade, subjacente ao que é manifesto. Por exemplo, um seminarista poderá ter o estilo cujo centro seja a timidez, ou a obsessão, a desconfiança, a dependência, o exibicionismo, etc. Tais características se tornarão presença constante em suas variadas atitudes.
A liberdade e o escolher, o decidir. Sendo particularmente complexo o discurso sobre a liberdade, sobre o nível de liberdade de cada pessoa, pode-se dizer, com segurança, que as pessoas não são igualmente livres para dispôr de si mesmas. Há pessoas nas quais o nível de liberdade efetiva é muito limitado, como nos casos das patologias graves (as psicoses). Nestes casos, as pessoas são fortemente dominadas por processos psíquicos que escapam ao conhecimento e ao controle. São os casos em que não se pode falar de pecado, de vício, mas de patologia. Na maioria das pessoas, porém, a liberdade é presente, mas sempre com algum nível de limite e imperfeição. Nenhuma pessoa é plenamente livre. Ninguém é capaz de fazer de si mesmo tudo o que deveria fazer. É fundamental, neste sentido, que o formador seja capaz de ajudar o seminarista a perceber as manifestações de limites ou bloqueios na liberdade efetiva. Um modo de manifestação desta fragilidade são as situações em que a pessoa se empenha sinceramente, deseja mudar a si mesma, e não consegue. Percebe-se ainda na distância entre as escolhas e decisões, e a maior ou menor capacidade de efetivá-las. Muitas são as situações concretas de limites, às vezes conscientes, e que continuam a ser obstáculo no processo de maturação da personalidade.
O comportamento diante dos conflitos, pressões e ansiedade. A vida submete todas as pessoas a diversas situações difíceis. Há os conflitos intrapsíquicos (entre o que devo fazer, o que é bom, e o que me agrada, o que é prazeroso), as diversas pressões internas e externas, e consequente ansiedade, consciente ou difusa. A intensidade desta psicodinâmica e sua duração provocarão mudanças no indivíduo, em sua vivência interna, e em seu comportamento. Algumas pessoas adquirem grande capacidade de resistência à pressão e à ansiedade, enquanto outras pessoas perdem o controle diante de situações normais, corriqueiras, da vida de cada dia. A diferença está no nível de organização estrutural do indivíduo. Quanto mais estruturada a pessoa, maior sua resistência. Como inevitavelmente o Ministério Sacerdotal desafiará a pessoa de diferentes maneiras, o formador deverá desenvolver técnica e sensibilidade para observar o comportamento de cada seminarista diante dos conflitos e pressões.
O desenvolvimento dos valores e ideais. Durante o processo de desenvolvimento, a pessoa é chamada a definir-se um específico sistema de valores. Na vida sacerdotal, são particularmente importantes os valores autotranscendentes, ou seja, os valores que têm origem na Revelação, e que conduzirão a pessoa, graças ao empenho pessoal e à ação do Espírito, à autotranscendência teocêntrica. Entre estes valores estão incluídos o amor (ágape), o seguimento a Jesus Cristo, a oração, a doação de si, etc. É necessário estar atento à diferença entre a proclamação de tais valores, e sua vivência (os valores meramente proclamados e os efetivamente vividos). Muitos valores são proclamados, mas quais verdadeiramente fazem parte da personalidade do seminarista? Em outras palavras, seria a pergunta sobre o nível de internalização dos valores. Até que ponto os valores cristãos e sacerdotais estão integrados e fazem parte da personalidade?
Relação entre necessidades e valores nas atitudes. Em toda atitude há valores e necessidades que interagem. Não há motivações puras, com apenas um destes componentes. O que muda é o nível de centralidade de tais componentes. Para a eficácia e perseverança vocacional, semelhante questionamento, sobre o componente motivacional, é de suma importância. Determinada atitude é motivada pela virtude da caridade, do amor ágape, ou pela necessidade de ser visto como o melhor, e ser aplaudido? Esta dinâmica se torna ainda mais complexa dada a presença de diferentes níveis de inconsciência de si e do próprio funcionamento mental. O inconsciente ocupa um papel muito importante em toda psicodinâmica.
A Ratio Fundamentalis nos estimulou à redação ou à atualização dos projetos pedagógicos dos nossos seminários, bem como do programa de formação permanente dos presbíteros. Estes documentos serão guias para a organização das atividades formativas em cada etapa. Sabemos que o objetivo é a formação de presbíteros, para o serviço ao Reino de Deus. Os meios, os instrumentos, as intervenções pedagógicas, aptas a atingir tão desafiante objetivo, deverão ser objeto de atenta e acurada reflexão, envolvendo todas as pessoas implicadas neste processo. Como foi dito anteriormente, a formação sacerdotal não é outra coisa senão um específico processo de desenvolvimento da pessoa, em sua integralidade. As reflexões aqui desenvolvidas têm por objetivo servirem de auxílio aos que se dedicarem a esta tarefa.
[1]“O objetivo dessas diretrizes é dar destaque à formação integral da pessoa, colocando a centralidade do itinerário formativo sobre a maturação afetiva e humana do seminarista (…)”. Doc. 110 CNBB, nº144.
[2]MANENTI, Alessandro. Lo sviluppo umano fra Psicologia e Mistero. Rivista di studi politici internazionali, v. 70, n. 2, 2003.