Imaturidades dos Discípulos de Jesus

Espiritualidade e Formação Presbiteral e Religiosa

Pe. José Carlos dos Santos

            A primeira e fundamental condição para tornar-se discípulo de Jesus é ser chamado por Ele. É o que nos mostra o evangelho de Marcos com extrema clareza. Logo depois de inaugurar sua pregação, anunciando que “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo” (1, 14), Marcos insere a narrativa da vocação dos primeiros discípulos: “Disse-lhes Jesus: Vinde em meu seguimento e eu farei de vós pescadores de homens. E imediatamente, deixando as redes, eles o seguiram”. A instituição dos doze discípulos é apresentada um pouco à frente, no capítulo terceiro. Jesus chamou a si os que ele queria, e eles foram até ele. Foram chamados para que ficassem com ele e para enviá-los a pregar.

            Uma análise psicológica desta narrativa nos deixa ao menos desconcertados. Marcos é extremamente sintético ao apresentar fatos tão representativos. O evangelista nada fala sobre fatos anteriores ao chamado: se já conheciam Jesus, sobre o percurso de discernimento que fizeram, se tiveram dúvidas antes de tomarem a decisão de deixar tudo para o seguimento do nazareno. Surpreende o fato de um chamado tão direto e lacônico ser acompanhado de imediata adesão e seguimento. A experiência nos mostra que, normalmente, uma decisão deste nível é precedida e sustentada por um longo caminho de conhecimento de Jesus e de discernimento, em que muitas formas de dúvidas e incertezas costumam estar presentes.

            Essencial para Marcos, a meu ver, é o fato de que na origem desta vocação tão específica necessariamente deverá estar o chamado de Jesus. E o evangelista não deixa muito espaço para se questionar a razão de Jesus escolher os que Ele escolhe. Simplesmente se diz que “chamou a si os que ele queria” (3, 13), e estes tiveram a coragem de responder positivamente: foram até Ele (3, 13).

            Diversamente, há uma intrigante passagem em que uma pessoa, em certo sentido, se oferece para seguir Jesus. Trata-se do endemoninhado geraseno, que foi libertado por Jesus (Mc 5, 1-20). Segundo Marcos “aquele que fora endemoninhado rogou-lhe que o deixasse ficar com ele” (5,18). Como vimos, os que foram chamados o foram para ficar com Jesus. O evangelista esclarece que “Ele não deixou”. Esta atitude de Jesus é plena de significados. Para esta pessoa Jesus apresenta um caminho, uma vocação diferente: “Vai para tua casa e para os teus e anuncia-lhes tudo o que fez por ti o Senhor…” (5, 19).

            Outra passagem representativa quanto ao tema da vocação, é a do homem rico (10, 17-22). Uma pessoa, cujas características não são descritas, se ajoelha diante de Jesus, e lhe pergunta o que fazer para herdar a vida eterna. Jesus aponta a ele o caminho da prática dos mandamentos. Ele responde que os tem guardado desde a juventude. Belíssima a atitude de Jesus, apresentada a seguir, descrita somente pelo evangelista Marcos: “Fitando-o, Jesus o amou” (10, 21), e o chamou para tornar-se discípulo, mas depois de dizer-lhe que lhe faltava vender os seus bens e dá-lo aos pobres. Amado por Jesus, um homem com experiência de fé aparentemente madura, recebe o chamado, mas responde negativamente por não estar disposto a acolher a condição colocada por Jesus para o discipulado.

            Vocacionalmente, não se pode dizer que os chamados por Jesus fossem as pessoas mais amadurecidas e consistentes. Causa grande surpresa ao leitor o quanto os discípulos foram lentos em entender quem era Jesus, e qual sua proposta de vida e discipulado. Um claro exemplo temos na passagem da profissão de fé feita por Pedro, em nome dos demais (8, 27). Depois de afirmar que Jesus é o Cristo, Pedro ouve Jesus anunciar sua paixão pela primeira vez (8, 31). Fica desconcertado, e se põe a recriminar Jesus. Que mecanismos interiores fizeram com que Pedro agisse daquela forma? Certo é que esta atitude tão imatura e inconsistente fez com que Jesus o repreendesse severamente, e com palavras muito duras: “Arreda-te de mim, Satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens” (8, 33).

            Há outra passagem igualmente elucidativa. Jesus caminhava com os discípulos através da Galileia, e lhes transmitia o ensinamento relativo à sua paixão. Era o segundo anúncio (9, 30). A passagem seguinte (9, 33) mostra o nível de conflito que este tema despertava nos discípulos. Eles nem sequer deram atenção ao que Jesus dizia. Enquanto o mestre falava, eles discutiam sobre quem entre eles seria o maior.

            Estas passagens nos permitem identificar, claramente, inconsistências vocacionais situadas nos valores da doação e do serviço. No íntimo dos discípulos estava o desejo de se tornarem importantes, serem os maiores, ocuparem postos e funções de honra, enquanto a vocação abraçada lhes propunha deixar tudo, negar-se a si mesmos e seguir o mestre. Um pouco à frente (10, 41) Jesus percebe que a questão ligada ao poder estava gerando grande conflito e divisão no grupo, e intervém de forma ainda mais clara. Aqueles que governam a nação as dominam. Entre os cristãos, contudo, não deve ser assim. Quem quiser ser grande, seja o servidor de todos (10,41).

            Um personagem de difícil análise e compreensão é Judas Iscariotes. Fora chamado por Jesus, e era um dos doze. Marcos não nos dá muitos detalhes sobre os fatos relativos à traição. Diz que Judas “foi aos chefes dos sacerdotes para entregá-lo a eles”, e aqueles “prometeram dar-lhe dinheiro”. Enquanto em alguns dos discípulos havia conflitos e inconsistências provocadas pelo desejo de fama e poder, ao que parece a imaturidade vocacional de Judas estava situada no desejo de ter, na posse de bens materiais. O discipulado proposto por Jesus passa pelo testemunho do desprendimento e pobreza, enquanto em Judas faltava a liberdade interior para alcançar semelhante nível de autotranscendência. O desdobramento da história, como sabemos, é muito triste, e não poderia ser mais eloquente. Jesus é traído com um beijo. O amor, possivelmente existente em Judas, e que terá resultado na resposta positiva ao chamado vocacional, se deteriorou. O conflito que havia em Judas entre o amor por Jesus e o “amor” pelo dinheiro resultou não somente na destruição do chamado vocacional, mas na destruição do próprio Judas.

            Ocupa lugar de singular importância em Marcos a narrativa da paixão e morte de Jesus. A longa conspiração contra Jesus, arquitetada pelas autoridades religiosas dos judeus, chegou ao momento de ser executada. E como se comportaram os discípulos em momento tão delicado para o mestre? Terão sido testemunhas corajosas de amor e fidelidade?

Quanto a este aspecto, o capítulo 14 deve ser lido atentamente. Destacam-se Judas e Pedro. Marcos faz várias referências a Judas: o momento em que combina a traição (14, 10); o anúncio da traição (14, 17-21); a traição propriamente dita (10, 43). No mesmo capítulo há a predição (14, 26-31), e o fato das negações de Pedro (14, 66-72). De acordo com Marcos, a participação dos discípulos na paixão e morte do Mestre foi decepcionante. Este evangelista não isenta nem mesmo o discípulo amado, como o faz o evangelista João. Em certo sentido, todos os discípulos, de alguma forma, foram traidores e infiéis, portanto imaturos humanamente e vocacionalmente.

            Marcos volta a mencionar os discípulos no último capítulo. O primeiro anúncio da ressurreição não foi feito aos discípulos, como se poderia esperar, mas às mulheres. “Ressuscitou, não está aqui” (16, 6). Merece atenção o fato de que elas ficam assustadas com a experiência e o relato feito pelo “jovem sentado à direita, vestido com uma túnica branca” (16, 5), mas nada dizem a ninguém. Nem aqui Marcos insere os discípulos, que reaparecem posteriormente. Jesus aparece a Maria de Magdala, que o anuncia aos discípulos, mas eles nem assim acreditam.

            O evangelho se encerra com a aparição do ressuscitados aos discípulos. Outra vez são censurados por sua incredulidade e dureza de coração. Por fim, os onze são enviados a proclamar o Evangelho a toda criatura (16, 15), e Jesus é arrebatado aos céus.

            Como se percebe, Marcos descreve com muita clareza, sem falseios ou negações, o perfil psicoespiritual dos discípulos de Jesus, do momento em que são chamados até a ascensão do mestre e o envio em missão. São inegáveis as imaturidades humanas e a lentidão quanto à maturação vocacional. Havia desejos fortemente estabelecidos de poder, de fama e grandeza, e apego aos bens materiais que se opunham e bloqueavam a compreensão da proposta de Jesus, e a adesão ao seu ensinamento.

Em Marcos, o personagem que mais claramente reconhece a identidade de Jesus é o demônio. Reconhece e anuncia em alta voz. Teme e obedece a Jesus. A título de exemplo, em Cafarnaum (1, 24-26) o demônio assim se dirige a Jesus: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Viestes para nos arruinar? Sei quem tu és: o Santo de Deus. Jesus, porém, o conjurou severamente: cala-te e sai dele. Então o espírito impuro, sacudindo-o violentamente e soltando um grande grito, deixou-o”.

A atitude do demônio está em claro contraste e oposição com a atitude da maioria dos personagens do segundo evangelho. Os discípulos têm dificuldade de reconhecer quem é Jesus. As autoridades religiosas judaicas o perseguem, e os parentes de Jesus chegam a pensar que ele enlouqueceu (3,20).

Os versículos finais do Evangelho apresentam uma situação ao menos intrigante: mais uma vez os discípulos são censurados por incredulidade, e assim mesmo são imediatamente enviados por Jesus. Creio que aqui se possa afirmar que as fragilidades humanas, resistentes ao longo de todo o evangelho, porque profundamente enraizadas na personalidade dos discípulos, não foram impedimento para a obra que Deus realizou por meio deles. A graça de Deus completou o que a natureza humana, por si mesma, não parecia capaz de realizar.

FacebookWhatsAppTwitter