Implicações Concretas da Ratio Fundamentalis no processo de atualização da Ratio Nationalis – Pe. José Carlos dos Santos

Formação Presbiteral e Religiosa

A Congregação para o Clero, cujo Prefeito é o Cardeal Beniamino Stella, ofereceu à Igreja, no dia 8 de dezembro de 2016, solenidade da Imaculada Conceição, um importantíssimo documento, intitulado “O Dom da Vocação presbiteral”. Enquanto o documento 93, elaborado pelo episcopado brasileiro, e aprovado pela Congregação para a Educação Católica em 3 de julho de 2010, contém as diretrizes para a formação de presbíteros da Igreja no Brasil, o Dom da Vocação Presbiteral (ou Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis) apresenta as diretrizes da Sé Apostólica para a formação de presbíteros, aplicando-se a todos os países sob competência da Congregação para o Clero(n. 1 e 2)

A redação de uma nova RatioFundamentalisesteve entre as primeiras iniciativas do Papa Francisco. A Ratio vigente até novembrode 2016, promulgada pela Congregação para a Educação Católica em 1985, consistia em emendas à Ratiode 1970, que foi enriquecida com o conteúdo do Código de Direito Canônico de 1983. Nestas décadas houve mudanças profundas no processo formativo dos presbíteros. Numerosos foram os documentos que emergiram, da parte do magistério pontifício e das Conferências Episcopais, dentre os quais recordamos a Pastores Dabo Vobis (1992), que se tornou o texto de referência para as Conferencias Episcopais e para as Igrejas Particulares.

A nova Ratio Fundamentalis, portanto, é expressão do zelo do atual pontífice para com o ministério presbiteral. No esforço de renovação da Cúria Romana, a Congregação para o Clero passou por significativasalterações. A esta Congregação foi confiada a formação inicial dos futuros presbíteros, anteriormente sob a competência da Congregação para a Educação Católica, tendo sido nomeado um Secretário para se dedicar exclusivamente às questões ligadas à formação inicial e permanente. Foram nomeados pelo Papa Francisco, ainda, o Cardeal Prefeito e o Secretário, além da substituição de vários dos sacerdotes que estavam a serviço daquele Dicastério.

A leitura da Ratio Fundamentalis nos permite perceber que se trata de um documento que tem sua origem e traz as marcas do atual pontificado. O Santo Padre, com efeito, em seu Magistério insiste frequentemente sobre o tema das vocações, em diversas circunstâncias, por exemplo, nas viagens apostólicas, por ocasião das visitas ad Limina,em muitas homilias, e o ensinamento deste magistério é parte integrante da nova Ratio.

Na mensagem dirigida aos membros da Assembleia plenária da Congregação para o Clero (3/10/2014), em que foi apresentado e amplamente discutido o texto-base da atual Ratio, o Papa Francisco se refere às vocações nos seguintes termos: “a vocação é um tesouro escondido no campo. Para o Santo Padre, a vocação é de fato um tesouro que vem de Deus, e depositado no coração dos que são chamados e escolhidos a segui-lo em diferentes modos, dentre eles o ministério presbiteral.

ARatio, ao apresentar a vocação ao ministério presbiteral como um precioso dom de Deus, acentua que este tesouro é entregue à solicitude da Igreja para um necessário, cuidadoso e prolongado processo formativo. Segundo o Documento, o “chamado divino interpela e envolve o ser humano concreto” (n. 93), que será inevitavelmente marcado por qualidades e imperfeições. À Igreja compete, então,favorecer o processo formativo, disponibilizando os meios adequados para o amadurecimento integral do candidato ao sacerdócio ministerial. Ressalte-se o fato de que o primeiro e insubstituível agente da formação será sempre o próprio seminarista, ao qual compete empenhar-se durante todo o itinerárioformativo, e abrir-se à ação da graça.

O documento 93 da CNBB – a Ratio Nationalis – vem cumprindo plenamente a sua função, que é oferecer orientações e normas concretas para a formação de presbíteros para a Igreja no Brasil. Fruto do empenho de todo o episcopado brasileiro, dos formadores e formandos de nossos seminários, o documento, em sua estrutura e em seu conteúdo, continua atual. Contudo, a promulgação da Ratio exige que a CNBB se empenhe na atualização das atuais Diretrizes, à luz do que propõe a Ratio Fundamentalis. Nas páginas que se seguem consideraremos algumas dentre as implicações concretas da Ratio Fundamentalis na atualização das nossas Diretrizes. O esforço será o de identificar, de modo objetivo, conteúdos da Ratio Fundamentalis que deverão enriquecer o documento normativo para a formação de presbíteros para esta Conferência Episcopal.

 

  1. Destinatários da Ratio Fundamentalis

Já em seu primeiro número a Ratio apresenta normas que são de grande importância para a Igreja no Brasil, e que precisam chegar ao conhecimento daqueles aos quais se destinam. Trata-se da definição daqueles que estão obrigados ao cumprimento e aplicação do conteúdo da Ratio Fundamentalis e, pela mesma razão, estão também obrigados ao cumprimento das Diretrizes elaboradas e atualizadas pela CNBB.

A atualização das Diretrizes, realizada graças ao empenho do episcopado brasileiro, faz com que a Ratio Fundamentalis seja acolhida e aplicada na formação dos presbíteros diocesanos. Evidentemente, o clero diocesano é um dos destinatários do documento. É nos Seminários diocesanos que se forma a maior parte dos vocacionados ao sacerdócio ministerial para a Igreja no Brasil, e por isto pode parecer que seja o seu destinatário exclusivo. Isto não é verdade. Há um número representativo de presbíteros cuja formação e exercício de ministério não está imediatamente sob jurisdição dos bispos, e que também deverão observar o que determina, a este respeito, a Congregação para o Clero.

Concretamente, o n. 01 nomeia os “Institutos de vida consagrada e as Sociedades de vida Apostólica”, afirmando, de maneira explícita, que a Ratio “se aplica integralmente nas Casas de Formação dos movimentos das novas comunidades eclesiais”. Isto significa, em linhas gerais, que a formação de presbíteros no Brasil deve se orientar pela Ratio Fundamentalis, sejam eles diocesanos ou pertencentes às Congregações religiosas e aos movimentos e comunidades eclesiais. Grande parte dos problemas, por vezes gravíssimos, enfrentados pela Igreja, se deve ao fato de serem admitidos às ordens sacras candidatos cuja formação não cumpre os requisitos exigidos pela Igreja.

 

  1. O Projeto formativo dos Seminários

A Ratio Nationalis (ou Diretrizes), cuja elaboração e atualização é responsabilidade das conferências episcopais, temo objetivo de “trazer e atualizar no seu contexto o que está previsto pela Ratio Fundamentalis” (n.7).  Cada país tem realidades, necessidades e exigências formativas concretas, que deverão ser consideradas ao se aplicarem as normas universais apresentadas pela Ratio Fundamentalis. Os bispos e formadores, para atingirem este objetivo, deverão trabalhar em estreito diálogo e colaboração, de modo a desenvolver um processo formativo que respeite simultaneamente o que é prescrito pela Santa Sé e que responda às realidades específicas das conferências episcopais presentes nos diferentes países e continentes.

Outra prescrição da Ratio Fundamentalis é a elaboração “de um projeto de formação integral, também chamado itinerário formativo, e de promover a sua efetiva aplicação” (n. 10), para cada Seminário. O contato com os Bispos Diocesanos e com os formadores nos mostra que este documento, ao que parece, não está ainda presente em muitos seminários no Brasil, e pairam dúvidas sobre qual seja o seu conteúdo e o modo de elaborá-lo. Este foi um item que recebeu especial atenção na atualização das Diretrizes.

É necessário ter presente que o projeto formativo é um documento de natureza pedagógica, diferente dos demais documentos obrigatórios, como o regimento e o estatuto, que deverão conter horários, regulamentos e normas, também estes indispensáveis ao salutar desenvolvimento do processo formativo. Para um país como o Brasil, de dimensões continentais e realidades tão variadas, a elaboração de projetos pedagógicos para os seminários é fundamental. A redação do projeto pedagógico, naturalmente, é de responsabilidade do Bispo Diocesano (ou Bispos, para seminários interdiocesanos), coadjuvado pela equipe de formadores, e deverá, concretamente, “propor-se o objetivo de declinar a Ratio Fundamentais e a visão pedagógica que a inspira” (RF n. 10) de modo a formar presbíteros que atendam as exigências das realidades às quais imediatamente deverão servir. Segundo a Ratio, este documento deverá observar, juntamente com as exigências de cada Igreja particular, a proveniência dos seminaristas, a pastoral da Diocese e a sua tradição formativa (n. 10).

Tratando-se, como se percebe, de um documento indispensável, a elaboração e aplicação do projeto formativo trará grandes benefícios para a formação sacerdotal, e poderá envolver, além dos Bispo Diocesano e da equipe de formadores, os seminaristas, representantes dos presbitérios, e leigos de diferentes especialidades e experiências.

 

  1. Os agentes da formação

No processo de atualização das Diretrizes mereceram especial atenção os números que se referem aos agentes da formação sacerdotal (125 a 152). A Ratio Fundamentalis se inicia afirmando que o principal agente da formação é a Santíssima Trindade, sendo reafirmado igualmente que cada seminarista é protagonista, insubstituível, da própria formação (n.127). O texto enumera os responsáveis, iniciando pelo Bispo Diocesano, o presbitério, os seminaristas, a comunidade dos formadores, os professores, os especialistas, dentre outros.

A leitura destes números, sobretudo em confronto com a nossa realidade eclesial, acentua a necessidade de ter especial cuidado com aqueles que se dedicam ao processo formativo. Esta exigência não é novidade, mas continua sendo igualmente pertinente e necessária. Para que se edifique um Seminário é fundamental que se constitua uma comunidade ou equipe de formadores, que tenham recebido uma específica e acurada formação para o desempenho deste trabalho, belo,mas sempre desafiante.

No n. 139 o documento distingue “comunidade dos formadores” e “comunidade educativa”. É a distinção que costumeiramente fazemos entre “equipe de formadores” e “comunidade educativa”. Esta distinção não é feita por acaso. Da comunidade dos formadores (ou equipe de formadores) fazem parte os presbíteros nomeados pelo Bispo (n.132), para prestarem os serviços definidos pela Ratio: Reitor, Vice-Reitor, Diretor Espiritual, coordenador ou coordenadores das dimensões, etc. Estes sacerdotes irão compor o “conselho dos formadores” do Seminário, recaindo sobre eles tanto o planejamento e a execução do processo formativo, em estreita comunhão com o Bispo, quanto fazer os escrutínios, nas ocasiões prescritas pelo Direito Canônico.

Um equívoco a ser evitado é aquele de confiar à comunidade educativa, da qual fazem parte todas as pessoas que se dedicam à formação sacerdotal, como os professores e os especialistas, atribuições e responsabilidades que competem exclusivamente à equipe ou comunidade dos formadores. Não é incomum que haja situações em que especialistas, como psicólogos ou pedagogos, equivocadamente participem da composição do Conselho de formadores dos Seminários.

A Ratio reitera que o Seminário deverá ter um número de formadores que seja correspondente ao número de seminaristas, e que alguns dos formadores deverão se dedicar exclusivamente ao processo formativo. Infelizmente, nem sempre isto acontece. Há situações frequentes em que o número de formadores é insuficiente, em que os formadores são nomeados simultaneamente para outras funções nas dioceses, além de nem sempre receberem a necessária formação.

O processo formativo de nossos Seminários exige, portanto, não somente a presença de pessoas que exerçam determinadas funções. É necessário constituir-se uma “verdadeira comunidade educativa, que oferece um testemunho coerente e eloquente dos valores próprios do ministério sacerdotal” (n.132). O acolhimento, por parte dos seminaristas, das propostas formativas que lhes serão dirigidas, requer a presença de formadores que edifiquem antes pelo testemunho, e somente depois por palavras.  

 

  1. Acompanhamento pessoal e comunitário, e a unidade da formação

A leitura da Ratio nos permite afirmar que o fato de o candidato ao ministério ordenado residir no Seminário não é suficiente. É essencial que os seminaristas sejam acompanhados individualmente, que haja uma comunidade formativa em que residam e se formem, e que o processo formativo seja unitário, embora dividido em etapas. Aos formadores, em comunhão com o Bispo, compete a grave responsabilidade do acompanhamento dos candidatos ao ministério ordenado, do ingresso nos seminários até a conclusão da formação inicial.

O número 44 afirma que os seminaristas precisam ser acompanhados de modo personalizado. O acompanhamento formativo é aqui entendido como uma modalidade específica de encontro entre o formador, “segundo a função e as competências que lhe são próprias”,e o formando. Nesta atividade formativa a relação interpessoal é o componente principal. O objetivo fundamental é chegar à profundidade da pessoa, em relação à interiorização dos valores e à transformação das atitudes, de modo a produzir “comportamentos” em conformidade com a identidadesacerdotal.

O acompanhamento personalizado, que deverá estar presente durante todo o processo formativo e continuar por toda a vida, tem a confiança recíproca como pré-requisito. Não se consegue chegar à intimidade do formando por outro caminho senão por aquele aberto pelo próprio formando, de modo autônomo e livre. O formador deverá transmitir a mensagem de que é digno de confiança, de que sabe ouvir, e que está preparado para auxiliar o formando em seu processo de discernimento e maturação vocacional.

Para que o acompanhamento personalizado seja realizado de modo frutuoso é necessário empenho, zelo, preparação e experiência. A Igreja insiste, em diferentes documentos e oportunidades, que os formadores deverão ser bons conhecedores da pessoa humana, o que significa que deverão ter uma suficiente preparação também em nível psicológico, especialmente nas áreas do desenvolvimento humano e da psicopatologia. São recomendados, ainda, momentos e oportunidades de encontro com especialistas, para atualização e aprofundamento da capacitação adquirida.

Um perigo, em que recaem muitos formadores, é o de confiar o acompanhamento personalizado exclusivamente a especialistas. Seria uma forma de “terceirizar” a formação. É no acompanhamento personalizado que o formando se deixará conhecer, que se tem a oportunidade de ajudá-lo na internalização dos valores vocacionais, em que a identidade sacerdotal receberá o necessário e indispensável apoio para se constituir.

Contudo, o processo formativo é essencialmente comunitário, daí decorrendo a necessidade de se desenvolver em comunidade. O presbítero diocesano se destina a tornar-se guia de uma comunidade cristã, inserido num presbitério. O Seminário, então, deverá preparar o futuro sacerdote para a inserção no presbitério, tornando-ocapaz de relacionar-se de modo maduro e saudável com o Bispo, com os irmãos presbíteros, e com o povo a que será chamado a servir.

É muito bela a proposta de se criar no Seminário o “Espírito de Comunhão” (n. 50), que formadores e formandos constituam uma comunidade formativa, formando-se presbíteros que são chamados a ser “homem de comunhão”. O acompanhamento comunitário não é menos desafiante que o acompanhamento pessoal. A psicologia nos ensina que o grupo exerce uma forte influência sobre os indivíduos, sendo necessário que os responsáveis pelo acompanhamento dos seminaristas estejam atentos “à experiência e à dinâmica de grupo no qual o seminarista está inserido” (n. 50).

A leitura da Ratio Fundamentalis nos permite afirmar que devem ser evitadas as situações em que os candidatos ao ministério ordenado são formados fora do contexto comunitário, isoladamente, ou em grupos ou seminários que não cheguem a constituir uma comunidade formativa. Uma comunidade formativa bem constituída auxiliará no delicado processo de internalização dos valores sacerdotais, ao passo que as comunidades imaturas poderão exercer influência negativa sobre os seus membros. Em outras palavras, a comunidade do Seminário poderá favorecer a maturação dos seminaristas, como também poderá fragilizar o processo de desenvolvimento em vista da maturidade humana, cristã e vocacional.

 

  1. A formação e suas etapas

As “Diretrizes”, sem dúvida, se enriqueceram com quanto vem explicitado na Ratio Fundamentalis a respeito da “compreensão” de formação e sobre as etapas em que se articula o processo formativo, números 54 a 88.

A formação é entendida como “um único e ininterrupto caminho de discipulado e missão” (n. 54), e se divide em “inicial” e “permanente”. A formação inicial é aquela que transcorre até a ordenação sacerdotal, iniciando-se com o ingresso no propedêutico, enquanto a formação permanente abrange todo o período do exercício do ministério sacerdotal. Esta explicitação, feita pela Ratio Fundamentalis, e acolhida pelas Diretrizes, tem por objetivo criar uma dinâmica formativa contínua, superando uma visão equivocada, segundo a qual, com a ordenação, o processo formativo se encerra. “A formação permanente representa uma necessidade imprescindível na vida e no exercício do ministério de cada sacerdote” (n. 56).

As etapas da formação inicial, embora permanecendo objetivamente as mesmas, receberam um novo e significativo enfoque. Em primeiro lugar, a etapa propedêutica formalmente passa a ser obrigatória, para todos os países, e para todos os candidatos ao sacerdócio. Até então, estava em caráter experimental. O texto recomenda que esta etapa, para favorecer sua identidade e autonomia, “seja vivida em uma comunidade distinta daquela do Seminário Maior e, onde for possível, que tenha uma sede específica”(n. 60), com seus formadores, objetivando “uma boa formação humana e cristã, e uma séria seleção dos candidatos ao Seminário Maior” (n. 60). Também a etapa do propedêutico deverá ser organizada a partir de um específico projeto formativo, cujo cerne serão as dimensões da formação. Para a organização dos estudos nesta etapa se propõe um elenco de disciplinas, que poderá, naturalmente, ser adaptado para responder às necessidades da diocese de pertença dos seminaristas.

As etapas seguintes, dos estudos filosóficos e dos estudos teológicos, foram denominadas, respectivamente, do discipulado, e de configuração. Esta nova nomenclatura tem por objetivo acenar para a identidade do período e do processo formativo que se desenvolve no Seminário Maior. Essencial não é a formação de especialistas em filosofia e teologia, mas a formação de pastores, de presbíteros. Para tanto, durante os anos dos estudos de filosofia “se apliquem todas as energias possíveis para enraizar o seminarista na sequela Christi, ouvindo sua Palavra, guardando-a no coração e colocando-a em prática”. Orientações ricas e precisas se encontram no documento sobre esta etapa, que requer “um trabalho sistemático sobre a personalidade dos seminaristas (…). A falta de uma personalidade bem estruturada e equilibrada representa um impedimento sério e objetivo para a continuação da formação ao sacerdócio”(n. 63).

Durante os estudos teológicos, por sua vez, cumpre organizar o processo formativo em modo a possibilitar “um mergulho profundo na contemplação da Pessoa de Jesus Cristo”(n. 68). A configuração com a pessoa de Jesus, uma das marcas distintivas do presbítero, tornará a relação com Cristo mais íntima e pessoal, e, ao mesmo tempo, favorecerá o conhecimento e a definição da identidade sacerdotal.

A quarta etapa da formação inicial se denomina etapa pastoral, compreendendo o período que medeia a estadia no Seminário e a ordenação presbiteral. É nesta etapa que se realiza a ordenação diaconal. A Ratio propõe que se realize “fora das instalações do Seminário, pelo menos por uma considerável parte de tempo” (n. 75). Concretamente, a partir das características e necessidades do candidato e da diocese, se deverá prever uma suficiente experiência pastoral, planejada e avaliada, para completar a formação oferecida nas etapas iniciais. A duração desta etapa, de acordo com a Ratio, é variável (n. 76).

A Ratio Fundamentalis dedica os números 80 ao 88 à formação permanente. As Diretrizes acolhem estas orientações, ao mesmo tempo que fazem o esforço de aplicá-las à nossa realidade. “Importa alimentar de maneira constante a chama que dá luz e calor ao exercício do ministério” (n.80), o que deverá ser favorecido pelas iniciativas da formação permanente, que se destina “a assegurar a fidelidade ao ministério sacerdotal, em um caminho de contínua conversão, para reavivar o dom recebido com a ordenação” (n. 81).

O texto traz orientações preciosas para a dinamização da formação permanente, referente aos responsáveis, às faixas etárias dos presbíteros e suas características, e aos desafios que normalmente atingem o ministério e a vida do presbítero (n. 84). No número 88 são apresentadas algumas das “modalidades que dão forma concreta à fraternidade sacramental”, cujo cultivo é especialmente recomendado desde a formação inicial.

 

  1. As Dimensões da Formação

O objetivo das dimensões é a “transformação ou assimilação do coração à imagem do próprio coração de Cristo” (n. 89). São integradas, e a partir delas é articulada a formação inicial e permanente, e a vida dos ministros ordenados. Foram propostas pela Exortação Apostólica pós-sinodal Pastores Dabo Vobis.

A formação sacerdotal, como transparece nos documentos anteriores à Pastores Dabo Vobis, se organiza sobretudo a partir de dois referenciais: a formação espiritual e a intelectual. Havia, naturalmente, atenção e cuidado com a pessoa do seminarista (dimensão humana), e com o exercício do ministério (dimensão pastoral), mas o desenvolvimento destas dimensões nem sempre recebia atenção e cuidado diretos, em comparação com quanto vem proposto pela Exortação pós-sinodal de 1992. Conclui-se, portanto, que a organização do processo formativo em dimensões permite formar a pessoa de modo integral, evitando reduzi-la a alguns de seus componentes. Um semelhante reducionismo traria sérios prejuízos para a pessoa do formando e para o exercício do ministério sacerdotal.

A Ratio Fundamentalis apresenta as dimensões em consonância com a Pastores Dabo Vobis, enquanto as Diretrizes propõem uma ligeira adaptação, objetivando responder à realidade da Igreja no Brasil. Nas Diretrizes de 2010, aprovadas pela Congregação para a Educação Católica, constavam as dimensões humano-afetiva (e não dimensão humana), dimensão pastoral-missionária (e não dimensão pastoral), acrescentando-se uma quinta dimensão, a dimensão comunitária.

Quanto à apresentação das dimensões nas atuais Diretrizes, a estrutura e grande parte do conteúdo se conservaram, uma vez que não houve grandes novidades quanto a este aspecto, nos últimos anos. O texto, contudo, merece ser lido atentamente, uma vez que foi objeto de estudo e reflexão por parte dos formadores e pelo episcopado brasileiro, não sendo poucas as alterações. Ao meu ver, a dimensão humana, na Ratio Fundamentalis, apresenta orientações e normas que merecem particular atenção. Procurarei acenar a alguns destes conteúdos.

A dimensão humana da formação tem por objetivo o cuidado da pessoa concreta, à qual o chamado vocacional é dirigido (RF n. 93). São necessários meios adequados para o processo de maturação. A preocupação, nestes termos, não se restringe à afetividade, mas à saúde física, ao crescimento e à busca da maturidade psíquica, à formação da consciência moral, à educação ao senso do belo, e ao âmbito social (n. 94). O que se busca é a promoção do crescimento integral da pessoa. Também é tarefa da dimensão humana a formação para a utilização da “realidade domundo digital” (n. 98, 99 e 100), que amplia significativamente o horizonte da evangelização, mas que precisa ser utilizadacom cuidado e prudência. O texto acentua, ainda, a necessidade de conhecimento do mundo feminino e o desenvolvimento da capacidade de relacionamento com as mulheres, cuja presença se destaca na atividade evangelizadora da Igreja.

O número VIII do documento, denominado “Critérios e Normas”, especifica alguns princípios cuja observância se torna normativa. Merecem destaque, ao meu ver, os seguintes:

  • Para ingresso no Seminário, o seminarista deve gozar de saúde física, sendo necessária a apresentação de resultados de exames médicos gerais (n. 190). Se os formadores julgarem pertinente, as condições de saúde do seminarista poderão ser verificadas durante o período de formação;
  • É evitada a admissão ao Seminário dos que sofram de qualquer patologia (n. 191). Recomenda-se, então, que seja feita uma avaliação psicológica, no momento da admissão ao Seminário, ou quando os formadores considerarem oportuno (n. 193);
  • Recomenda-se a presença, apoio e assessoria de especialistas de diferentes áreas, durante o processo formativo. Quanto aos psicólogos, afirma-se que “a contribuição das ciências psicológicas revelou-se, em geral, como uma ajuda apreciável aos formadores” (n. 192). A escolha destes profissionais, por esta razão, deve ser feita de modo atento e prudente (n. 192), devendo distinguir-se “por uma sólida maturidade humana e espiritual, devem inspirar-se numa antropologia que abertamente partilhe da concepção cristã acerca da pessoa humana, da sexualidade(…)” (n. 192).
  • A Ratio reitera o que está estabelecido em documentos anteriores no que se refere aos laudos e relatórios solicitados aos peritos em ciências psicológicas. Para se obter informação do especialista em psicologia, então, como se sabe, é necessária a manifestação, por parte da pessoa interessada, de um consentimento prévio, bem informado, livre e dado por escrito (n. 194). Em síntese, o trabalho do psicólogo deverá respeitar tudo o que é definido pelo Conselho Federal de Psicologia, pelo Código de Direito Canônico e pelos demais documentos do magistério eclesiástico.
  • Indicações preciosas são apresentadas quanto aos processos psicológicos que devem receber atenção e cuidado durante o psicodiagnóstico e o processo terapêutico. A título de exemplo, o n. 195 estabelece que o perito em psicologia deve contribuir para a compreensão do tipo de personalidade do candidato, dos problemas que enfrenta, as possibilidades de crescimento, e apresentar itinerários de apoio psicológico.

Como se percebe, a Ratio trouxe significativas contribuições para o desenvolvimento da dimensão humana da formação, que foram acolhidas e incorporadas no texto das nossas Diretrizes.

 

  1. Tipologia de Seminário

É consenso que a formação para o ministério ordenado deva acontecer em um Seminário. É o que prescreve o Direito Canônico e o mesmo fazem os demais documentos relativos à formação. Seminário é uma palavra que, em geral, traz uma carga positiva de emoções: tempo de crescimento, de convivência, de construção de amizades profundas, de cultivo do ideal vocacional.

Para o nosso contexto, contudo, é necessário refletir sobre o tipo ou perfil de Seminário em que se concretiza o ideal de edificação de uma estrutura apta à formação dos futuros presbíteros, com toda complexidade implicada neste longo e exigente itinerário formativo. Por Seminário a Ratio entende “uma comunidade formativa” (n. 188), cujos requisitos são “um número de vocações e de formadores suficientes para garantir uma comunidade formativa, um corpo docente capaz de oferecer uma formação intelectual de qualidade, além da sustentabilidade econômica da estrutura” (n. 188).

Percebe-se que a ereção de um Seminário deve ser precedida de uma avaliação atenta. Portanto, não significa que todas as dioceses devam ter o seu seminário. A Ratio alerta os bispos para que evitem “com cuidado que um seminarista, ou um exíguo grupo de seminaristas, habite estavelmente em um alojamento privado” (n.188). Os candidatos ao sacerdócio ministerial têm o direito de receber uma adequada formação, em que as dimensões sejam satisfatoriamente desenvolvidas, inseridos numa comunidade formativa, e com formadores (e professores) adequadamente preparados.

A proposta da Ratio é que haja diálogo entre os bispos (n. 188). Concretamente, um Seminário diocesano pode acolher seminaristas de outras dioceses, bem como podem ser erigidos Seminários interdiocesanos, que necessitam da aprovação da Congregação para o Clero. Seminário e alojamento são realidades diferentes. Seminários requerem grande investimento humano e financeiro, e para fazer frente a isto, os bispos precisam encontrar formas de trabalhar em comunhão, em benefício da Igreja.

Uma modalidade de Seminário presente não somente no Brasil é aquele em que os seminaristas frequentam cursos acadêmicos em uma Universidade ou Faculdade. Há que se ter, evidentemente, grande cuidado na escolha de uma instituição de ensino à qual confiar a formação intelectual dos seminaristas. As Diretrizes consideraram atentamente esta questão. A Ratio recomenda que “o coordenador da dimensão intelectual deverá inteirar-se sobre sua vida acadêmica e segui-los, observando a integração das matérias estudadas e predispondo um plano formativo complementar, para integrar os aspectos e temas da formação não tratados” (n. 137). Na prática, é grande o desafio quando os seminaristas estudam numa instituição não-eclesiástica, e cujos cursos não tenham como objetivo primeiro a formação de pastores.

 

  1. As vocações Sacerdotais

O Brasil é reconhecido como um país em que a fé cristã-católica é parte integrante da cultura e da vida das pessoas. Está entre os maiores países católicos do mundo, tendo a conferência episcopal com o maior número de bispos. Neste contexto, é expressivo o número de seminaristas, embora a relação entre número de presbíteros e habitantes ainda esteja distante da ideal. Há ainda sensível diferença quanto ao número de presbíteros entre as regiões deste país, que tem dimensões continentais.

O cuidado com as vocações sacerdotais se fundamenta na certeza de que as vocações eclesiais “são manifestações das incomensuráveis riquezas de Cristo (Ef 3,8) e, portanto, devem ser tidas em grande consideração e cultivadas com prontidão e solicitude, de modo a que possam desabrochar e amadurecer” (RF. 11). A Igreja, que recebe os dons de Deus, deve cuidar do nascimento, acompanhamento e discernimento das vocações, em particular das vocações ao sacerdócio ministerial.

A Ratio orienta para que sejam instituídos, nas dioceses, “Centros para as vocações sacerdotais” (n.13), que deverão orientar a pastoral vocacional, havendo eficaz cooperação entre sacerdotes, consagrados e leigos, no interior de uma orgânica pastoral de conjunto. É necessário, sobretudo, orar pelas vocações, criando-se um ambiente favorável ao seu surgimento e florescimento, prevendo-se momentos do ano litúrgico para este objetivo.

O cuidado e acompanhamento das vocações deve estar atento também ao acompanhamento dos adolescentes. Historicamente, este trabalho é desenvolvido pelos Seminários Menores, que devem ser mantidos onde existem, e erigidos onde o bispo julgar oportuno (Can. 32 e RF n. 17). Outras iniciativas de acompanhamento de adolescentes são reconhecidas e incentivadas, como grupos vocacionais, comunidades de acolhida vocacional, e os colégios católicos (RF n. 18). No Brasil há muitas experiências desta natureza, que precisariam ser fortalecidas e partilhadas entre as dioceses.

Atualmente cresce o número dos que descobrem o chamado ao sacerdócio ministerial na idade adulta. Configura-se, portanto, um perfil de vocacionado muito diferente daquele considerado anteriormente. Normalmente são pessoas marcadas por um histórico de atividade profissional, formação acadêmica em áreas diversificadas ou pessoas que  há muito tempo interromperam os estudos. O percurso vital de tais candidatos é marcado por experiências diversificadas também em outras áreas, incluindo a sexual e afetiva.

O ingresso no Seminário destes candidatos, portanto, deverá merecer especial atenção. “Em razão de serem pessoas com personalidade estruturada, requer prévio acompanhamento e discernimento” (RF n. 24), devendo-se fazer previamente um caminho espiritual e eclesial. A avaliação destes candidatos ao ingresso no Seminário deverá ser especialmente atenta ao seu perfil, por tratar-se, como afirma a Ratio, de pessoas com personalidade estruturada. A probabilidade de que pessoas nesta etapa da vida passem por mudanças significativas é, portanto, muito pequena.

Quanto à formação, deverá ser tão séria e completa (RF n. 24) quanto para os demais seminaristas, buscando-se, porém, um oportuno método pedagógico e didático. Caso julgue conveniente, a Conferência Episcopal poderá se pronunciar, emanando normas específicas para a formação destes candidatos. A Ratio se refere a questões como a previsão de um limite de idade de admissão de candidatos adultos, e a consideração da hipótese de se erigir um Seminário especial para estes casos (n. 24).

 

Conclusão

 

A Ratio Fundamentalis ou “O Dom da Vocação Presbiteral” está sendo acolhida de maneira muito positiva pela Igreja no Brasil, ao menos por parte do episcopado e dos formadores dos Seminários diocesesanos, com os quais tenho maior convivência. Há a consciência da importância do documento. Há o desejo de conhecê-lo, e há uma associação imediata entre o conteúdo deste documento e o pontificado do Papa Francisco. Pode-se dizer que a Ratio Fundamentalis encontrou, na Igreja do Brasil, o terreno preparado e fértil, em que poderá germinar e, esperamos, produzir bons frutos.

É igualmente positivo o impacto deste documento sobre o documento 93 da CNBB, sobre as nossas Diretrizes. Instintivamente fazemos um paralelo entre os dois documentos e, em geral, concluímos em que as nossas Diretrizes permanecem atuais, em sua estrutura e conteúdo, embora tenha sido aprovada há quase umadécada. Cabe aqui uma palavra de agradecimento à nossa Conferência Episcopal, pelas Diretrizes para a formação de Presbíteros, mas sobretudopelo seu empenho e zelo para com a formação. As Diretrizes são fruto de nossa reflexão sobre a formação, mas também da nossa prática formativa. Quanto à formação sacerdotal, a Igreja no Brasil tem um patrimônio cultural e pedagógico, de uma riqueza inestimável. A Ratio nos permite constatar a beleza do caminho feito, e por isto rendemos graças a Deus, fonte e Senhor de tudo.

Muitas são as pessoas que se surpreendem com as semelhanças existentes entre os dois documentos, Diretrizes e Ratio. Alguns chegam a criar a hipótese de que a Ratio utilizou as Diretrizes como fonte, embora não citada. Esta afirmativa não é verdadeira. É inegável que há semelhanças. A Ratio tem por fundamento os mesmos documentos utilizados pela Igreja no Brasil para elaborar as Diretrizes, dentre elas destacando-se a Exortação pós-sinodal Pastores Dabo Vobis, e os documentos conciliares. Além disto, a Ratio reflete, em grande parte, a experiência formativa da Igreja da América Latina, uma vez que esteve sob responsabilidade direta do Mons. Patron Wong, arcebispo mexicano, secretário da Congregação para o Clero que acompanha a formação dos futuros presbíteros. Por estes motivos, enquanto para muitas conferências episcopais a Ratio traz grandes novidades, para a nossa realidade há a confirmação de que estamos no caminho certo, e isto nos estimula e motiva a dar continuidade aos nossos trabalhos.

O contato direto com os dois documentos, contudo, nos faz perceber que temos ainda muitos desafios a serem superados. Nem tudo são flores. Os pontos acima elencados, em razão do confronto da Ratio com as Diretrizes, foram selecionados naturalmente, em razão de tratarem de questões fundamentais, muitas delas ainda distantes de terem a atenção e a aplicação concreta que requerem. Temos Seminários e experiências formativas muito bem constituídos no Brasil. Mas há realidades formativas que precisam ser revistas e aprimoradas, à luz da complexidade da formação e da proposta da Igrejaem nível globale no Brasil.

A formação sacerdotal exige alguns requisitos mínimos e indispensáveis, como um Seminário, uma equipe de formadores que tenham sido capacitados para esta atividade, um projeto pedagógico ou formativo. A formação intelectual pressupõe estudos de filosofia e teologia de qualidade, e professores não somente competentes, mas que tenham a consciência de sua responsabilidade formativa. As dimensões precisam ser efetivadas, de modo adequado, nas diferentes etapas, sendo necessário atenção ao acompanhamento individual e comunitário, e à formação integral dos Seminaristas. Os escrutínios, em todas as etapas, serão o resultado da qualidade do acompanhamento, da compreensão da identidade sacerdotal, e do nível de sensibilidade formativa dos formadores.

Há não poucas situações em que os formadores, ao participarem de cursos de capacitação, retornam angustiados, em razão da distância entre a formação sacerdotal que oferecem, e o que é necessário e proposto pela Igreja. Querer nem sempre é poder. Há situações em que há desejo de aprimorar o trabalho formativo, mas muitas vezes faltam os meios e recursos necessários.

O que fazer, diante dos desafios a serem enfrentados? Quanto a isto, a chegada da Ratio tem sido muito benéfica. O documento está provocando a todos para uma nova reflexão sobre o processo formativo. O episcopado brasileiro, juntamente com os formadores, esteve envolvido no processo de atualização das Diretrizes, à luz da Ratio Fundamentalis. O texto foi objeto de ampla discussão e análise, com as resultantes alterações, e o processo continua, com a apresentação do texto à Congregação para o Clero.

É necessário destacar, ainda, os muitos momentos formativos, sob aspectos diferentes, que estão acontecendo. Para a apresentação da Ratio aos formadores no Brasil esteve presente Mons. Patron Wong. A OSIB tem se empenhado para cumprir o seu papel, que é significativo, por acompanhar de perto o processo formativo e os seus agentes.

Concluo afirmando que as soluções para os muitos desafios somente serão encontradas no diálogo e no trabalho solidário. Os bispos, sob a coordenação da CNBB, com atuação cada vez mais decisiva da Organização dos Seminários (OSIB), precisam continuar priorizando a formação, enfrentando os desafios. Somente a partir da solidariedade das dioceses conseguiremos criar as estruturas de que necessita o processo de formação dos futuros presbíteros. Confiamos a Deus, Senhor de tudo, nossas preocupações, nossos projetos e nossos esforços.

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