O Sofrimento Humano

Formação Presbiteral e Religiosa e Psicologia

Pe. José Carlos dos Santos

            Quando se fala sobre sofrimento, imediatamente nosso pensamento se direciona para a dor física, em suas variadas formas. Todos tememos a violência, e nos aflige o crescente número de assassinatos. Há doenças cujo diagnóstico nos apavora. Recordo a partilha de uma jovem senhora sobre o que sentiu quando os médicos lhe disseram que era portadora de uma forma agressiva de câncer no útero, e que em razão disso teria que fazer um longo, complexo e doloroso processo terapêutico. Além disso, para todas as pessoas, na medida em que a vida avança, inevitavelmente se experimenta a fragilização da saúde e possíveis diferentes formas de adoecimento.

            A dor física nos amedronta e procuramos evitá-la a todo custo. Contudo, “por aguda que possa ser a dor física, a forma peculiarmente humana de sofrer não é física” (Magda Arnold), mas psíquica ou emocional. O homem, com efeito, é antes de tudo um animal simbólico ou emotivo. Nossa entrada no mundo é marcada por um turbilhão de emoções, ao sermos expulsos do aconchegante útero materno. A forma de ser e de relacionar-se com o mundo, nos anos iniciais de nossas vidas, é quase exclusivamente instintiva e emocional. A razão, apresentada como a característica humana por excelência, desenvolve-se lenta e tardiamente, em comparação com as emoções. E mesmo em etapas posteriores, os afetos e as emoções são os grandes responsáveis pela nossa estabilidade ou instabilidade, realização ou frustração existencial, por uma vida marcada por felicidade e alegria ou por sofrimento e dor.

             A psicanálise, importante corrente da psicologia moderna, tem o mérito de perceber o papel decisivo que as emoções ocupam em nosso funcionamento mental. Para os psicanalistas, o homem é um animal emocional. E não somente isso. As emoções subjugam, destorcem e enganam a razão,  além de poderem funcionar de tal maneira que ocupam o seu lugar no controle do funcionamento mental. Não são raros os casos em que a “razão” das escolhas, de importantes e decisivas atitudes, não é a razão – a lógica aristotélica – mas as emoções. E nem sempre são emoções positivas, saudáveis e equilibradas.

            De acordo com Sigmund Freud, somos movidos pelo princípio do prazer. Nossa mente seria organizada de tal maneira que as ações ou atitudes têm o objetivo, nem sempre consciente, de evitar a dor e o sofrimento, e obter o máximo possível de prazer[1]. Entre as dores, que procuramos evitar a todo custo, estão os castigos e punições, decorrentes do não cumprimento das leis que regem a vida em sociedade, mas também aquelas que têm origem em nosso interior, provocadas pelas emoções. Nossa vida não seria outra coisa senão o aprendizado de estratégias cujo objetivo fundamental é fugir das dores, em suas variadas formas, e construir um modus vivendi em que haja o máximo possível de prazeres, bem-estar e alegrias.

            Concordo que haja muito o que contestar, quanto à antropologia freudiana. Mas, creio que seja correto afirmar que o princípio do prazer parece ir se solidificando como o componente a partir do qual a sociedade se organiza e estrutura, e a partir do qual grande parte das pessoas constroem as próprias vidas. A sociedade capitalista promete e vende prazer, satisfação e alegria. E em consequência, difunde-se a ilusão de que seja possível viver sem sofrimento, que passa a ser entendido como contrário à natureza humana. A capacidade de resistência ao sofrimento, que somente pode ser alcançada como resultado de um saudável processo de desenvolvimento e educação, é fragilizada, fragilizando-se a pessoa de modo global e irreparável.

             Há aspectos do autoconhecimento que são fundamentais. Dentre os mais importantes está a capacidade perceber objetivamente a natureza das próprias emoções. A psicologia humanista afirma que frequentemente acontece que alguém esteja envolvido pela tristeza, pela raiva ou pela ansiedade, mas que simplesmente não consiga dar significado ao que está acontecendo em seu “campo fenomenal”. O observador externo, por vezes, entende que a pessoa precisa de ajuda, mas pode não conseguir ser útil se a própria pessoa não tiver acesso ao que está acontecendo dentro de si. Quando a pessoa não consegue se livrar do sofrimento, uma alternativa viável é se iludir de que não está mais sofrendo.

            O mundo emotivo de cada pessoa, com o decorrer da vida vai assumindo um colorido específico. Em todas as pessoas há alegria e tristeza, amor e agressividade, esperança e desilusão, otimismo e pessimismo. Em cada personalidade algumas emoções tornam-se predominantes. Estabelece-se o que conhecemos como estado de humor. Alegria, esperança e otimismo pode ser o que caracteriza uma pessoa, enquanto acontece que prevaleça a tristeza, a raiva e o rancor. E estas emoções estarão presentes numa determinada intensidade, que poderá ser ou não saudável e proporcional à situação existencial experimentada. O atendimento clínico nos permite perceber o quanto é difícil conhecer objetivamente o mundo interior, especialmente no que concerne à esfera emocional.

            Quando prevalecem emoções dolorosas por tempo prolongado,  a vida se torna extremamente difícil. O sofrimento emotivo pode atingir a intensidade de levar ao desespero, situação em que a pessoa perderá a capacidade de orientar-se a partir dos critérios da razão. Há situações em que o sofrimento é visível, transparente. Há muitas situações, contudo, em que o sofrimento é silencioso, imperceptível. Pode ser que haja causas aparentes, como a perda de um ente querido. Diferentemente, há situações em que não se perceba a presença do sofrimento e nem mesmo, evidentemente, aquilo que o esteja provocando.

            Um princípio irrenunciável é que não se pode medir o quanto o outro esteja sofrendo. É possível, por vezes, saber o que houve. É possível também, hipoteticamente, considerar o que aconteceria em meu mundo interior se estivesse acontecendo comigo. Mas não é possível mensurar o quanto de dor o mesmo acontecimento provoca em outra pessoa. E nem mesmo é possível prever o quanto de dor cada pessoa cada pessoa poderá suportar sem fragmentar-se psicologicamente. O que fazer, então, diante do sofrimento próprio (e alheio)? Como preparar-se para o inevitável?

Estimar a própria resistência ao sofrimento. Uma vez que diferentes formas de sofrimento nos acompanham desde o nascimento, a análise das situações concretas de sofrimento presentes em nossa história nos permite estimar, com alguma objetividade, nossa maior ou menor capacidade de resistência à dor e ao sofrimento. Há pessoas que resistem e pouco se desestabilizam em situações extremamente difíceis e dolorosas, enquanto há pessoas extremamente frágeis. Resistência ou fragilidade não são alternativas que escolhemos, mas o autoconhecimento nos possibilita desenvolver um estilo de vida em sintonia com o que está ao nosso alcance suportar, e a adotar as medidas adequadas quando ocorrerem situações imprevisíveis e que escapem ao nosso controle.

Reconhecer-se como frágil e imperfeito. O sentimento de onipotência é um grave engano em que incorrem muitas pessoas, sobretudo quando se trata de questões emocionais. Somos muito mais frágeis e imperfeitos que reconhecemos. A ansiedade pode se estabelecer improvisamente, bem como a tristeza e a insônia, mesmo em pessoas que sempre se caracterizaram pelo bem estar emocional. É correto afirmar que as maiores ameaças não são provocadas por nossas fragilidades, mas pelas fragilidades que desconhecemos, porque temos dificuldade de admiti-las. Ao que parece, pessoas que têm por “ofício” o cuidado com o outro de tal modo se habituam a cuidar, que podem tornar-se refratárias a se perceberem carentes e necessitadas de cuidado.

Entender o sofrimento como um componente da natureza humana. Diante do sofrimento, uma pergunta comum e equivocada seria “por que está acontecendo comigo?”.  Por que tinha de acontecer naquele exato momento? Por que o câncer? Por que a perda do emprego? Por que não fui resistente, capaz, fiel…? As formulações podem ser infinitas. Quando imersos na dor, frequentemente nos esquecemos de que estamos sujeitos a todas as situações de sofrimento, e que não sou somente eu que passo por semelhantes situações, mas milhares de pessoas em todo o mundo. O correto é aceitar que não sou diferente ou melhor que os outros e, portanto, por que não aconteceria comigo se acontece com tantas pessoas? Viktor Frankl nos motiva a substituir o “por quê” pelo “para quê”, no sentido de que tudo tem uma finalidade, e pode nos trazer importantes lições para o próprio amadurecimento.

Ter a humildade de buscar/aceitar ajuda. Para toda forma de sofrimento há diferentes e variados tipos de cuidado. Há sempre alguma coisa que se pode fazer, mesmo nas situações mais dolorosas e irreversíveis. A situação mais desafiante é quando a pessoa que sofre não aceita o auxílio que se coloca à sua disposição. Quando ao sofrimento emocional, a psicologia e a psiquiatria se desenvolveram muito nas últimas décadas. Há variadas formas de psicoterapia. O tratamento com os psicofármacos se tornou muito mais eficaz, e com menores contra indicações. Há situações em que é suficiente acolher a presença amorosa e amiga do outro, e encorajar-se para o recomeço. O sofrimento não somente desestabiliza. Algumas vezes amadurece, eleva e enobrece.

Construir um estilo de vida saudável. O modo como organizamos a vida contribui para fazer de nós pessoas mais resistentes ou mais frágeis. A saúde deve ser entendida de forma integral. Não é possível ter saúde mental sem adequado cuidado com o corpo e com o espírito. Do mesmo jeito que devemos exigir de nós empenho e zelo no trabalho, devemos ser zelosos também quando ao tempo de descanso e férias. Há quem se sinta culpado por tirar tempo para o descanso, para atividades esportivas e espirituais. Não há saúde pela metade. Não é possível ter somente uma parte de nosso ser saudável, e esta lição não pode ser descurada.

Suportar com coragem o sofrimento inevitável. Recordo um senhor que padecia fortes dores causadas por uma forma incurável de câncer. Não me esqueço quando disse que “dói tanto que dá vontade de subir pelas paredes”. Um outro, pessoa muito simples, disse que “tô precisando muito de morrer”. São situações-limite, nem sempre raras. Por vezes, como afirma Frankl, a  mais alta façanha possível é suportar o sofrimento com serenidade.  Nestes casos, creio que o sofrimento não trará nenhum fruto a não ser que seja vivido à luz da fé, como Jó: “Reconheço que tudo podes e que nenhum dos teus desígnios fica frustrado. Falei de coisas que não entendia, de maravilhas que me ultrapassam. Eu te conhecia só de ouvir, mas agora meus olhos te veem. Por isso, retrato-me e faço penitência no pó e na cinza” (Jó 42, 1-6).

            Diante do sofrimento do outro, seja de que natureza for, nada é mais significativo e eficaz que a empatia. Quando se consegue ter adequada ressonância interior do que está acontecendo no no mais profundo do outro, será impossível permanecer inerte. A empatia nos permite perceber, em certa medida, que o outro está sofrendo, e o quanto está sofrendo. Segundo alguns estudiosos, empatia é um dado natural, mas que precisa ser cultivada e desenvolvida. Deus nos livre de duas coisas: de perder a empatia diante da dor do outro, e de dividir a vida com pessoas que perderam a empatia.


[1]MADDI, Salvatore. Personality Theories: a comparative analysis. Pacific Grove: Brooks/Cole Publishing, 1996, p. 28.

FacebookWhatsAppTwitter