Redescobrindo o amor: uma reflexão a partir da obra de Erich Fromm

Psicologia

Carlos Geovane Nunes Magri*

 

Hoje, em todos os lugares em que se olha, muito se fala de amor: letras de músicas, propagandas comerciais, campanhas publicitárias, romances escritos, novelas… o “amor” está em todos os lugares. Mas, será mesmo o amor? Ora, pelo tanto que se fala de amor, é-nos permitido considerar duas possibilidades: ou a sociedade contemporânea sabe tanto amar que em tudo o que ela faz ela deixa este sentimento como marca presente (e por isso tanto se fala de amor); ou então ela perdeu completamente o sentido do amor a ponto de repetir descomedidamente esta palavra. Bom, ao analisar a realidade do mundo ao nosso redor, especialmente o cenário nacional atual, não é necessária profunda reflexão para refutar a primeira destas duas opções e admitir a segunda: a palavra amor é muito repetida, mas esqueceu-se por completo do seu real significado – o que tanto se repete hoje pelo mundo afora, em grande parte das situações, pode ser tudo, exceto amor. De fato, tal questionamento nunca foi tão necessário. Em tempos tão conturbados, de profundas transformações sociais, de crises e conflitos, o que tanto se diz por “amor” é muito distante da realidade.

O que, então, é o amor? O amor é uma arte! Assim é o modo como Erich Fromm o define em sua obra “A arte de amar”. O amor não é um sentimento sem nenhum critério, no qual qualquer um, de qualquer modo, pode se comprazer. O amor tem uma razão de ocorrer, uma necessidade: todas as pessoas têm a necessidade de amar. Assim como em outras artes, como a pintura, a música ou a dança, para que seja vivenciado, o amor exige conhecimento e esforço. O amor não vem simplesmente; não é fortuito, fruto do acaso; o amor é um exercício, uma atitude. O amor leva em conta o nível de maturidade que se alcançou: todas as tentativas de alguém amar fracassarão se não se embasarem na verdadeira doação, no cuidado, na responsabilidade, no respeito e no conhecimento.

A pretensão deste trabalho é apresentar um redescobrimento do real sentido do amor à luz da obra “A arte de amar”, de Erich Fromm e de seu pensamento. Para isto, num primeiro momento, será apresentada a situação em que o amor se encontra em nossa sociedade: a de esquecimento, também apresentando os três equívocos comuns a respeito do amor. Posteriormente, nos orientaremos para sua redescoberta, propriamente dita, afirmando a necessidade deste sentimento nos seres humanos, suas características básicas e suas principais manifestações.

1 O ESQUECIMENTO DO AMOR

Na metafísica, Heidegger foi autor que ficou conhecido por trabalhar a questão do esquecimento do ser. Segundo ele apontava, houve ao longo da história da filosofia um esquecimento real da questão do ser, que fora substituída por outras coisas. Muitos foram os autores que se propuseram a tratar do ser: obras grandiosas falando de ontologia, falando de um estudo do ser – para Heidegger, estas obras tomavam outras coisas como ser, e deixavam o real “ser” de lado; ou seja, acreditava-se falar do ser, porém, dele mesmo, pouco (ou nada) se falava. Para Heidegger, a ontologia deveria se ocupar de uma redescoberta do ser, removendo todo “entulho” que fora colocado no lugar do ser.

Assim como Heidegger afirmou a respeito da metafísica clássica o esquecimento do ser, hoje contemplamos o “esquecimento do amor”. O “amor” já se tornou uma palavra quase desgastada pela extremada e indevida repetição. O trabalho a ser realizado nesta questão é quase de repetir o esforço heideggeriano do redescobrimento do ser: deve-se empreender “um redescobrimento do amor”. Consiste nessa redescoberta retirar todos as confusões colocados sobre a questão do amor; desconstruir os equívocos tomados como verdade a respeito das relações de amor e apresentar o significado real deste sentimento.

Há uma atitude que afirma não ser necessário um estudo sobre o amor, pois amar é apenas uma simples sensação agradável que se experimenta por acaso, e não há nada a se aprender a respeito dele. Esta hipótese se fundamente em três equívocos a respeito do problema do amor, que conduzem ao seu esquecimento. Por esta via, o primeiro passo a ser dado no redescobrimento do amor é remover estes equívocos. O primeiro equívoco da questão do amor está em que “a maioria das pessoas vê o problema do amor, antes de tudo, como o de ser amado, em lugar do de amar, da capacidade de alguém para amar. Assim, para essas pessoas o problema é como serem amadas, como serem amáveis” (FROMM, [19–] p. 11). Em suma, este primeiro problema de compreensão do amor está numa visão egocêntrica da situação: a verdadeira questão não é o que deve ser feito ou não para amar as outras pessoas, mas sim o que deve ou não ser feito para que o indivíduo seja amado. Nesse sentido, diversos caminhos surgem visando um ser amado. “Um deles, especialmente utilizado pelos homens, é ter sucesso, ter todo o poder e riqueza que a sua posição social permitir. Outro, especialmente utilizado pelas mulheres, é tornarem-se atraentes, pelo cuidado com o corpo, o vestuário, etc.” (FROMM, [19–], p. 11).

Um segundo equívoco a ser resolvido está em conceber que o problema a se resolver do amor é o problema de um objeto, e não o de uma faculdade (FROMM, [19–], p. 11). No senso comum que assim concebe, o difícil não é o ato de amar, em si, mas sim encontrar um objeto de amor correto. Isto se dá pelo avanço da própria cultura moderna: anteriormente os casamentos arranjados eram comuns, realizados por convenções sociais ou interesses familiares – cria-se que o amor em si se desenvolveria após efetuado o casamento; hoje, o casamento arranjado, na grande maioria dos casos, gera estranheza e crê-se que o amor é fruto de uma experiência pessoal que, apenas a seguir, pode levar ao casamento. Segundo apresenta Fromm:

Nas últimas poucas gerações, o conceito de amor romântico tornou-se quase universal no mundo do Ocidente. Nos Estados Unidos, ainda que considerações de natureza convencional não estejam de todo ausentes, vasto número das pessoas anda à busca do “amor romântico”, da experiência pessoal de amor que acabe por levar ao matrimônio. Esse novo conceito de liberdade no amor deve ter acentuado grandemente a importância do objeto em contraste com a importância da função. ([19–], p. 12).

Assim visto, para muitos o problema não está no ato de amar, mas sim em encontrar o objeto correto para destinar o amor: a atenção centra-se toda no objeto, não na importância da função. A isso, atrela-se a questão do consumismo desenfreado, da troca favorável, em que está imersa toda a nossa cultura. Para muitos, a felicidade está em se olhar vitrines de lojas e comprar tudo quanto do melhor possível – e as pessoas são encaradas de maneira semelhante: “duas pessoas se apaixonam quando sentem haver encontrado o melhor objeto disponível no mercado” (FROMM, [19–], p. 12). Será atraente aquela pessoa que apresentar maior lucro na relação. Atraente, aqui, tem o sentido de um bom conjunto de qualidades populares e bastante procuradas no mercado da personalidade (FROMM, [19–], p. 12). Porém, como se sabe, boa aparência e considerável atração são questões ditadas pela época e cultura em que se vive. A problemática se faz ainda mais forte ao se analisar que se o amor assim se conduzisse, ao se variar de acordo com o tempo o que a sociedade considera como atraente, como bem aparente ou apetecível, variar-se-ia também o amor. Ora, um amor que varia de acordo com o tempo e as condições culturais? Isto pode parecer qualquer outra coisa, menos amor.

O terceiro e último equívoco que se deve extirpar está em se confundir a simples experiencia de cair enamorado e o estado de permanecer em amor.

Se duas pessoas estranhas uma à outra, como todos somos, subitamente deixam ruir a parede que as separa e se sentem próximas, se sentem uma só, esse momento de unidade é uma das mais jubilosas e excitantes experiências da vida. É tudo o que há de mais admirável e miraculoso para quem tem estado fechado em si, isolado, sem amor. Esse milagre de súbita intimidade é muitas vezes facilitado quando se combina, ou se inicia, com a atração sexual e sua satisfação. (FROMM, [19–], p. 13).

Por este lado, a confusão explícita está entre a paixão e o amor, e geralmente uma forte paixão iniciada pela relação sexual. Em si, este tipo de sentimento, que é erroneamente chamado de “amor”, não é duradouro, pois quando se acaba a paixão, acaba também o sentimento: os envolvidos, a medida em que avança o tempo, vão se conhecendo, “sua intimidade perde cada vez mais o caráter miraculoso, e seu antagonismo, suas decepções, seu mútuo fastio acabam por matar tudo quanto restava da excitação inicial” (FROMM, [19–], p. 13). O erro está em que no início, as pessoas tomam a intensidade da paixão como uma prova do amor que sentem uma pela outra, quando, na verdade, é apenas uma superação de uma anterior solidão.

Estes três comuns equívocos do problema do amor não tratam do amor em si. Tratam daquilo de muito que se comumente diz do amor, mas que não ele é. Após apontar aquilo que o amor não é, um próximo passo dado no redescobrimento da questão do amor está em apresentar no que consiste, então, este sentimento: a teoria do amor, em primeiro plano, como uma resposta ao problema da existência humana.

 

2 A NECESSIDADE DE AMAR

Foi dito anteriormente que o problema do amor ou se dá por uma confusão entre paixão passageira e amor, ou entre confusão entre faculdade de amar e objeto de amor, ou por pensar que o real problema do amor é como ser amado. Sanados estes problemas, realizada uma limpeza “dos entulhos” colocados na questão do amor, resta responder, então, no que consiste este sentimento. A teoria do amor corresponde à teoria própria do homem, da existência humana. É consenso que o marco diferencial do homem em relação aos outros animais é sua racionalidade. Enquanto os animais, principalmente no que concerne aos seus afetos, são completamente conduzidos por seus instintos, os homens, por outro lado, possuem apenas remanescentes desse equipamento instintivo. Apesar do apanágio da razão no homem, ele emergiu da natureza, transcendeu-a, todavia, sem deixá-la; é parte da natureza, mas não totalmente unido a ela.

Quando o homem nasce — a raça humana assim como o indivíduo — é lançado fora de uma situação que era definida, tão definida quanto os instintos, para uma situação indefinida, incerta e exposta. Somente há certeza com relação ao passado — e, quanto ao futuro, apenas com relação à morte. O homem é dotado de razão; é a vida consciente de si mesma; […] Essa consciência de si mesmo como entidade separada, a consciência de seu próprio e curto período de vida, do fato de haver nascido sem ser por vontade própria e de ter de morrer contra sua vontade […], a consciência de sua solidão e separação, de sua impotência ante as forças da natureza e da sociedade, tudo isso faz de sua existência apartada e desunida uma prisão insuportável. Ele ficaria louco se não pudesse libertar-se de tal prisão e alcançar os homens, unir-se de uma forma ou de outra com eles, com o mundo exterior. (FROMM, [19–], p. 15).

Percebe-se que o homem está, apesar de sua emergência da natureza, separado dela. Esta separação equivale a um estar desamparado, passivo diante do mundo, das coisas e das pessoas – é um estar incompleto. Esta separação encontra-se, na tradição judaico-cristã narrada no mito do Gênesis[1]. Depois de desobedecerem, depois “que se tornaram humanos por se terem emancipado da original harmonia animal com a natureza, isto é, depois de seu nascimento como seres humanos” (FROMM, [19–], p. 16), Adão e Eva sentiram vergonha após notarem sua nudez. Mas a motivação da vergonha, segundo Fromm ([19–], p. 16), não é unicamente esta nudez, mas sim a consciência de estarem separados, de serem de diferentes sexos. Além disso, ao reconhecerem a separação, continuam estranhos um ao outro, pois não haviam aprendido a amar um ao outro. “A consciência da separação humana, sem a reunião pelo amor, é a fonte da vergonha. É, ao mesmo tempo, a fonte da culpa e da ansiedade” (FROMM, [19–], p. 16).

Desde sua origem enquanto indivíduo, enquanto espécie, a maior necessidade do homem é superar esta separação entre ele e a natureza, de libertar-se desta prisão de estar só. Em todos os tempos, em todas as épocas e culturas, o homem coloca-se diante de uma e mesma questão: como superar esta separação, realizar a união, transcender a individualidade que lhe é própria e sintonizar-se com a natureza? Ao longo da história, as respostas dadas foram diversas: rituais em tribos e religiões que buscavam um retorno à união com a natureza por meio de estados orgíacos dos mais variados, a experiencia sexual (que muitas vezes envolvia ritos de orgias sexuais comunitárias) – tudo em vistas de se encontrar meios novos de fugir à separação. Em culturas que abandonaram essas práticas comuns, outras soluções são buscadas: o alcoolismo e o uso de drogas, por exemplo. Todos esses meios propiciam ao homem algum tempo sem sofrimento com sua separação. Todavia, após este período de tempo, a tensão da ansiedade sobe novamente e o homem sente-se acometido pelo sofrimento de separação, tendo de recorrer novamente a estes ritos.

Com a evolução da sociedade, as formas de união para fugir da separação natural desenvolvem-se: “a união baseada na conformidade com o grupo, seus costumes, práticas e crenças” (FROMM, [19–], p. 18). Na sociedade ocidental contemporânea, a superação da separação pela união com o grupo é extremamente forte.  Crê-se que se o indivíduo é igual aos demais, está a salvo da separação, salvo da experiência desoladora da solidão. E isto está de tal modo tão incutido na mentalidade dos indivíduos, que estes nem percebem a necessidade que a sociedade lhes impõe de uniformizarem-se: na verdade, tais indivíduos vivem na ilusão de estarem seguindo suas próprias tendências quando, na verdade, suas ideias são as mesmas da grande maioria. Há aqui uma deturpação do conceito de igualdade: antes significava sermos um, ou seja, ser cada indivíduo uma entidade única. Porém, na sociedade capitalista, igualdade significa a perda de individualidade, a padronização do homem no processo social.

A união do homem por esta igualdade deturpada, por esta conformidade é ditada pela rotina, pelo corriqueiro da vida; é sutil e discreta, porém, ainda insuficiente de acalmar a ansiedade da separação natural. “A incidência do alcoolismo, do vício de drogas, do sexualismo forçado e do suicídio na sociedade ocidental contemporânea é sintoma dessa falência relativa da conformidade de rebanho” (FROMM, [19–], p. 20). Bem mais discreta, outra forma de alcançar a união está na atividade criadora. “Em qualquer espécie de trabalho criador, a pessoa que cria une-se a seu material, que representa o mundo que lhe é exterior” (FROMM, [19–], p. 22). Porém, este tipo de união estabelece-se apenas entre um indivíduo e sua obra realizada.

Ora, se não é por meio da obra produtiva, pois esta não é interpessoal, se não é por meio da fusão orgíaca, pois esta é transitória, e se não é pelo conformismo, pois este é apenas pseudo-unidade, como realizar a unidade e solucionar o problema da separação e solidão do homem? A resposta que abarca e soluciona por completo o problema da existência está na realização da unidade interpessoal; está no amor (FROMM, [19–], p. 22). O amor é uma necessidade do homem, pois o faz superar a separação, o faz sair do estado de ansiedade, o liberta da prisão de estar só e o une com a natureza, com o mundo e com o outro.

 

3 AS CARACTERÍSTICAS DO AMOR

Deve-se ter claro que o amor deve ser compreendido não como formas imaturas que podem ser chamadas de união simbiótica, mas sim como resposta amadurecida ao problema da existência. No primeiro sentido, enquanto união simbiótica, há uma relação de submissão, por parte de um, de dominação, por parte de outro; de extrema dependência entre as partes envolvidas; é uma fusão sem integridade. A relação amadurecida, o amor amadurecido, por outro lado, é uma união que respeita a integridade própria, que preserva a individualidade de ambas as partes envolvidas. O amor conduz cada indivíduo “a superar o sentimento de isolamento e de separação, permitindo-lhe, porém, ser ele mesmo, reter sua integridade. No amor, ocorre o paradoxo de que dois seres sejam um e, contudo, permaneçam dois” (FROMM, [19–], p. 23).

O amor é atividade, é atitude, não é um afeto passivo. De modo mais geral, o caráter ativo do amor pode ser descrito afirmando-se que o amor, antes de tudo, consiste em dar, e não em receber” (FROMM, [19–], p. 23). Amor é doação; doação desprendida e total; sem reservas e sem medo. Nota-se amor como doação na mãe que “dá de si ao filho que cresce dentro dela, dá seu leite à criança, dá-lhe o calor de seu corpo. Não dar seria doloroso” (FROMM, [19–], p. 25). No amor, a pessoa dá o que lhe é mais precioso: a própria vida – não estritamente no sentido literal, mas dá suas alegrias, suas tristezas, seu interesse, seu existir. A doação no amor não busca receber; é um gesto desprendido; se dá por amor, pois o dar já é, em si, grande alegria.

Além do elemento de dar, outros elementos básicos que o amor implica, sendo comum a todas as usas formas, são o cuidado, responsabilidade, respeito e conhecimento (FROMM, [19–], p. 27). O cuidado é a preocupação ativa pela vida, crescimento e totalidade daquilo que amamos. Como cuidado, a essência do amor é, segundo o que Deus explica a Jonas[2], “’trabalhar’ por alguma coisa e ‘fazer alguma coisa crescer’” (FROMM, [19–], p.28). A responsabilidade é o ato inteiramente involuntário; é resposta dada às necessidades, expressas ou não, de outro ser humano; ser responsável é ter de responder, é estar pronto para isso (FROMM, [19–], p.28). O terceiro eleito é o respeito, que não é medo e temor, mas equivale a capacidade de ver uma pessoa tal como ela é, de respeitar sua individualidade e sua integridade singular. Porém, tal respeito não é possível sem o conhecimento da outra pessoa; por isto este é o quarto ponto. O conhecimento “que é um aspecto do amor é aquele que não fica na periferia, mas penetra até o âmago. Só é possível quando posso transcender a preocupação por mim mesmo e ver a outra pessoa em seus próprios termos” (FROMM, [19–], p. 29).

 

4 AS MANIFESTAÇÕES DO AMOR

Até aqui, apresentaram-se os principais equívocos que impedem um estudo sobre o amor; qual a necessidade de se amar e quais as principais características do amor. Como afirmado, o amor não é “uma relação com uma pessoa específica; o amor é uma atitude, uma orientação de caráter, que determina a relação de alguém com o mundo como um todo, e não para com um objeto de amor” (FROMM, [19–], p. 40). Como se sabe, a maioria das pessoas cai no equívoco de crer que o amor é construído pelo objeto, e não pela faculdade. A atitude de pessoas que assim procedem “pode ser comparada à de alguém que queira pintar, mas, em vez de aprender a arte, proclama que lhe basta esperar pelo objeto certo, passando a pintá-lo belamente quando o encontrar” (FROMM, [19–], p. 40). Todavia, devemos ter consciência de que este amor se nos apresenta de diversas formas. Ora, afirmar que o amor é uma faculdade, ou seja, uma “orientação que se refere a todos e não a um não implica, entretanto, a ideia de que não haja diferenças entre vários tipos de amor, que dependem da espécie de objeto que é amado” (FROMM, [19–], p. 41). Apesar de ser uma faculdade, há diferença entre os diversos tipos de amor – não são a mesma coisa. As manifestações do amor não se dão da mesma maneira entre si. Por exemplo, no caso do amor entre os pais com os filhos, este tipo de amor não se manifesta da mesma maneira entre os próprios pais: o amor do pai para com seu filho não se manifesta do mesmo modo como o amor da mãe. No caso do amor materno, este é um tipo de amor incondicional. O filho é amado por aquilo que ele é, pelo fato de ele ser filho.

Esta experiência de ser amado pela mãe é passiva. Nada tenho de fazer a fim de ser amado; o amor de minha mãe é incondicional, tudo o que tenho a fazer é ser – ser o seu filho. O amor da mãe […] não precisa ser adquirido, não necessita ser merecido. Mas há um lado negativo, também, na qualidade incondicional do amor de mãe. Não só ele não precisa ser merecido; não pode, igualmente, ser adquirido, produzido, controlado. Se existe, é como uma bênção; se não existe, é como se desaparecesse da vida toda a beleza – e nada posso fazer para criá-lo. (FROMM, [19–], p. 36).

Por outro lado, o amor do pai se apresenta de outro modo. O filho, para que seja amado, deve preencher as expectativas do pai, cumprir aquilo que deve ser feito, deve ser como o pai (FROMM, [19–], p. 38). O amor do pai tem de ser merecido. Numa relação de pai e filho, a maior virtude para se alcançar o amor é a obediência e o maior pecado será a desobediência. O amor do pai vai se conquistando aos poucos. Neste tipo de amor, o respeito à figura e autoridade do pai são pontos importantes, pois será o pai aquele que, com suas exigências, ensinará o filho a seguir no mundo, de modo a agir responsavelmente.

A mãe é o lar de que proviemos, é a natureza, o solo, o oceano; o pai não representa qualquer desses lares, naturais. Tem pouca ligação com o filho nos primeiros anos de sua vida, e sua importância para a criança, nesse período primitivo, não pode ser comparada com a da mãe. Se, porém, não representa o mundo natural, o pai representa o outro pólo da existência humana: o mundo do pensamento, das coisas feitas pelo homem, da lei e da ordem, da disciplina, das viagens e da aventura. O pai é aquele que ensina ao filho, que lhe mostra a estrada do mundo. (FROMM, [19–], p. 38).

A medida em que o indivíduo cresce e se desenvolve, as duas manifestações iniciais do amor, tanto materna quanto paterna, devem se equilibrar dentro da pessoa. A base da saúde mental e da complementação da maturidade está na síntese entre o afeto centralizado na mãe e o afeto centralizado no pai: a pessoa amadurecida amará tanto com a consciência materna quanto com a paterna; ela se livrará dos vultos externos do pai e da mãe e os constituirá dentro de si (FROMM, [19–], p. 39).

Além desta diferenciação do amor entre os pais com os filhos, há diversas outras manifestações do amor apresentadas segundo o autor Erich Fromm: o amor fraterno ([19–], p. 41-42), o amor erótico ([19–], p. 44-47), o amor próprio ([19–], p. 48-52) e o amor a Deus ([19–], p. 52-64). Apesar de todos estes tipos, para continuar tratando nesse momento do problema do esquecimento do amor, devemos nos ater de modo especial num tipo específico: o amor próprio.

A necessidade de tal atenção especial se dá em reparação a uma falsa crença bastante difundida. É consenso crer que o amor seja destinado a diversos objetos; quanto a isto, não há nenhuma objeção. Porém, quando este objeto é a si próprio, a situação torna-se diferente. Parece estar incutido na mentalidade de muitos que o amar ao próximo é uma louvável virtude e que é, de certo modo, um erro, um pecado, amar a si próprio. Há uma confusão do amor próprio com uma relação de egoísmo; parece que, para muitos, há uma básica contradição entre o amor próprio e o amor pelos outros.

Ora, “se é uma virtude amar o meu próximo, como um ser humano, deve ser uma virtude – e não um vício – amar a mim mesmo, pois também sou um ser humano” (FROMM, [19–], p. 49). Toda a compreensão do homem deve levar em conta o indivíduo próprio, o eu. Deve-se respeitar a integridade e singularidade própria de cada um, inclusive de si mesmo. Nesse ponto, “não só os outros, mas nós mesmos, somos o ‘objeto’ de nossos sentimentos e atitudes; as atitudes para com os outros e para conosco mesmos, longe de serem contraditórias, são basicamente conjuntivas” (FROMM, [19–], p. 49). É a partir disto que se pode afirmar que em relação ao indivíduo, o amor próprio e o amor aos outros não são alternativas; do contrário, aquele que não tem amor próprio não é capaz de amar plenamente. Como síntese do amor próprio em relação aos outros, não há melhor do que a de Meister Eckhart[3] (apud FROMM, [19–], p. 51-52):

Se te amas, amas a todos os demais como a ti mesmo. Enquanto amares outra pessoa menos do que amas a ti mesmo, não conseguirás realmente amar a ti mesmo, mas se a todos amares igualmente, sem exclusão de ti, ama-los-á como uma só pessoa, e essa pessoa é tanto Deus quanto homem. Assim, grande e reto é aquele que, amando-se, ama a todos igualmente.

Percebe-se que há uma diferença entre o amor próprio e o egoísmo. O egoísmo exclui qualquer preocupação pelos outros; o egoísta só se importa consigo mesmo. Tudo o que deseja, deseja apenas para si – não se apraz com a doação – não se interessa com as necessidades de outrem que não as suas apenas. “O mundo exterior é encarado apenas do ponto de vista daquilo que ela pode extrair dele; falta-lhe […] respeito por sua dignidade e integridade. […] julga tudo e todos pela utilidade que lhe possam ter; é basicamente incapaz de amar. (FROMM, [19–], p. 50).

Aqui se encontra o cerne da confusão apresentada de considerar o amor próprio um pecado. O problema está realmente é no egoísmo. Muito se ouve dizer que o problema do mundo hoje está em que muitas pessoas apenas amam-se a si mesmas, têm excessivamente o amor próprio e não amam outros além de si. Em realidade, tais indivíduos não amam a si; do contrário, são egoístas e nem mesmo amor próprio estes o têm, pois o amor próprio implica uma abertura para os outros objetos de amor. O egoísmo é uma falha do amor próprio.

O egoísmo e o amor próprio, longe de serem idênticos, são efetivamente opostos. A pessoa egoísta não ama a si mesma demais, mas demasiado pouco; de fato, odeia-se. Esta falta de afeição e cuidado por si mesma, que apenas é expressão de sua falta de produtividade, deixa-a vazia e frustrada. Ê necessariamente infeliz e ansiosamente preocupada em furtar da vida as satisfações que a si própria impede de atingir. Parece cuidar demasiado de si mesma, mas de fato apenas faz uma tentativa mal sucedida de encobrir e compensar seu fracasso em cuidar de seu ser real. (FROMM, [19–], p. 50).

A pessoa egoísta não é simplesmente incapaz de amar os outros, mas é também incapaz de amar a si própria. O egoísmo fecha os olhos do indivíduo às necessidades do mundo e dos outros, fecha-o em si mesmo. É o egoísmo que coloca barreiras entre os indivíduos; o amor, ao contrário, supera-as.

O problema da contemporaneidade que serve como chave de leitura para tantas situações confusas em que se vive – como guerras, corrupção exacerbada em nível nacional e internacional – está em que todas essas coisas não são excesso de amor próprio; ao contrário, são carência. Vivemos hoje realmente numa crise, mas não simplesmente econômica ou social, mas numa crise do amor. É por não amar a si que muitos não amam seu próximo. Como dito no início deste trabalho, o amor está muito presente enquanto palavra, mas não enquanto ação, enquanto gesto concreto. O amor não é simplesmente um vocábulo bonito que deve ser usado para se conseguir o que se deseja; o amor é atitude. É por esta confusão que vivemos num contexto em que “o amor” se desgastou, em que, em boa parte, já está perdido.

 

CONCLUSÃO

Como visto, vive-se hoje em um contexto do “esquecimento do amor”. Muito se diz “amor” em todos os meios possíveis; muito se ouve falar deste sentimento em meio a uma sociedade imersa em crises e angústias. E de tantas falas equivocadas e infundadas sobre este sentimento, parece-nos que ele até mesmo perdeu seu sentido. Assim como Heidegger propõe realizar um desvelamento do ser na ontologia, deve-se contemplar uma redescoberta do amor em nossa sociedade. O problema do amor não está em como ser amado, não está em escolher um objeto certo – o problema do amor está em como se o compreende e o concebe. O amor não é um simples cair enamorado, não é paixão. Todas essas coisas aparentemente dizem do amor de algum modo, entretanto, elas não dizem do amor em si realmente.

O amor é uma arte que exige de nós dedicação; é uma atitude que exige conhecimento e esforço. O amor é uma ação do homem em vistas de suprir uma necessidade: o amor é a resposta ao problema da existência humana. É ele que supera a separação entre o homem e a natureza em sua origem, a separação entre o homem e o mundo que gera ansiedade. É o amor que o liberta da prisão de estar só e lhe permite transcender a individualidade que lhe é própria e sintoniza-o com a natureza. Porém, para que este amor seja, de fato, resposta amadurecida ao problema da existência, deve conter em si as características essências de doação, cuidado, responsabilidade, respeito e conhecimento do outro.

O amor é uma arte que se manifesta de diversos modos, seja na relação entre pais e filhos, na relação fraterna, numa relação erótica, numa relação consigo mesmo ou numa relação com Deus. Dentre essas manifestações do amor, o amor próprio é o que está mais relacionado com o problema do esquecimento do amor. Isto se dá, pois o amor próprio é, na maioria dos casos, confundido e pensado como oposto ao amor pelos outros: muitos pensam que é uma virtude amar o próximo, mas é um pecado amar-se a si mesmo. Ora, quem não se ama é incapaz de amar os outros. Então, se na dimensão do amor próprio há uma deficiência, é mais do que esperado haver também uma deficiência nos outros tipos de amor.

A situação tão conturbada e turbulenta que a sociedade vive atualmente, em especial no cenário nacional, vem ocorrendo em decorrência do excesso do egoísmo e do esquecimento do amor. Vive-se uma crise não simplesmente econômica ou social, mas sim uma crise do amor. O egoísmo e o amor próprio são antagônicos; é exatamente por não amarem a si próprios que muitos são incapazes de amar o próximo. Esqueceu-se o que o amor é! Ele não é uma palavra vazia, um simples sentimento. O amor é uma faculdade, uma ação que deve ser redescoberta por cada um de nós.

 

REFERÊNCIA

 

FROMM, Erich. A arte de amar. Tradução Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, [19–]. Disponível em: < http://estudioterraforte.com.br/wp-content/uploads/2013/07/arte-de-amar.pdf>. Acesso em: 3 out. 2017.

* Graduando em Filosofia na Faculdade Dom Luciano Mendes

[1] Gn 1. In Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2010.

[2] Jn 4, 10-11. In Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2010.

[3] Meister Eckhart, tradução inglesa de E. B. Blakeny, Londres, Watkins, 1955

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